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Este post dedicado aos 462 anos da Cidade da Bahia, completados hoje, dia 29 de março de 2011, se divide em três partes. Na primeira, o escrivinhador e conselheiro-mor deste blog, zédejesusBarrêto, amargurado com a degradação da “Mãe Preta”, a cidade amada, recorda em prosa poética um bom momento de reencontro com ela. Na segunda parte, o poeta José Carlos Capinan satiriza Salvador quase à maneira de Gregório de Mattos, em poema dedicado ao poeta e jornalista Florisvaldo Mattos. E na terceira parte, Capinan declara seu amor à Cidade da Bahia em letra de música que Roberto Mendes transformou num afoxé, gravado pela cantora Carla Visi.
PARTE I
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texto de zédejesusBarrêto
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Queria um texto bonito, afetuoso,
para homenagear a cidade amada,
a Mãe Preta
que faz 462 anos neste 29 de março/2011.
Mas descubro-me sem inspiração.
Talvez pela amargura de vê-la tão
vilipendiada, sofrida, mal-cuidada…
Então optei por um texto que escrevi na primavera de 2008,
logo que retornei de uma viagem de trabalho a África-Angola-Luanda …
com o coração apertado de saudades.
Segue:
*
Chegança
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Sexta.
.
Acordo com bem-te-vis e fogo-pagôs saudando o dia
Abro as janelas
O cheiro de mato e maresia me invade
Manhã luminosa de quase primavera-verão
O reflexo do sol nas folhas largas das bananeiras provoca
um verde exuberante
Um brilho intenso se espalha pelo tempo
Aspiro luz numa aragem pura que vem do mar, adiante, tão próximo
Ligo o rádio
Caetano canta Wando, dolente e belo
À noite tem João e violão no TCA
Nos jornais, a viagem derradeira de Waldick, do brega ao paraíso
A caminho do Ilê Opô Afonjá, ouço Mateus Aleluia, sacro-afro-barroco Angola e recôncavo
Na roça do Opô Afonjá, o branco de Oxalá
Silêncio, respeito e paz
O tempo noutra dimensão
Axé! Êpa babá!
Flutuo
No caminho dos Mares
Aprecio as torres das velhas igrejas, mirantes da fé
No ponto do buzu da Jequitaia, um grupo de 20 pessoas …
Homens, mulheres, velhos, jovens, crianças
Todos de branco, da cabeça aos pés
Riam, felizes, soltos, feito anjos
No templo gótico da Senhora dos Mares
– madrinha, mulher, rainha –,
elevo-me aos céus
no rastro da intensa luz que clareia a nave vazia pelos vitrais coloridos
Só eu e ela, Mãe!
Sinto-me abençoado.
Subo a Sagrada Colina para agradecer
O padre celebra, no altar florido
O branco predomina
Nos trajes, nos panos litúrgicos, na decoração
O Senhor do Bomfim reluz no dourado que a réstia de sol alumia
Mulheres negras de torços e colares de contas coloridas
quedam-se de joelhos e reverenciam com a cabeça
o poder dos mistérios da fé
Uma brisa forte vinda das lonjuras do mar-além
varre o interior do templo e refresca as almas
Mas não apaga a chama das velas, dos corações dos devotos
O Bomfim me comove
O hino cantado pelo povo me engasga, me faz chorar
Sempre, inexplicável.
Saio da igreja em estado de graça
Fora, nas escadarias, converso, beijo e ganho brindes
das velhinhas que vendem fitas-medidas abençoadas pelo ar purificado
que cobre, perfuma, purifica e passeia na Colina Sagrada.
Dá vontade de comer um filé em Juarez, no antigo Mercado do Ouro…
Ou uma moqueca de carne no Moreira, que está fazendo 70 anos…
Ou o peixe de Lula, no Mini Cacique, da rua Rui Barbosa…
Hum! Gostosuras da Mãe Preta!
O céu está limpo, com nuvens alvas
desenhos de algodão sobre o azul infinito
A visibilidade é tamanha que diviso ao longe, do outro lado do mar
da baía de Todos-os-Santos, Orixás, Voduns, Inquices e Caboclos,
a torre da igrejinha de Vera Cruz, nítida.
O cristalino azul do mar faísca em prateadas escamas
Odoyá!
Olhando pro Atlântico sem fim
penso na vó materna, Angola
Ela nos ensinou o que é dengo, saudade, molejo, mandinga.
Agora sei,
estou chegado.
Aninho-me…
É morno e macio o colo da Mãe Preta, Cidade da Bahia.
*
(zédejesusbarreto, jornalista e escrevinhador)
O texto acima é um trecho do livro ‘Cacimbo – Uma experiência em Angola’ – Solisluna Editora, 2010.
O livro ‘Cacimbo’ foi lançado na Bienal Internacional do Livro, em São Paulo, no ano passado. ‘Cacimbo’ aborda, numa prosa quase versejo, as identidades e dessemelhanças entre Luanda e Salvador, cidades fêmeas, irmãs, filhas das águas atlânticas.
Angola é vó da Bahia.
A bença, minha Mãe Preta!
Obs: O livro está à venda, nas livrarias da cidade (Pérola Negra, Cultura, Saraiva, Aeroporto, LPM …
**
“Salvador não salva ninguém
Mas a Bahia é a Bahia!”
(Gigica do Maciel, pensador de rua, lúcido e louco, filósofo do Pelô)
***
PARTE II
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Canto quase Gregoriano
(fragmentos)
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A Florisvaldo Mattos
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JOSÉ CARLOS CAPINAN
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Então, cidade, como estás em teu moderno estado?
E como nos tem tratado teus convertidos prosélitos?
E teus alcaides, cidade
O que de novo tem praticado?
(Estás ainda tão feia quanto teus brongos, alagados)
Seriam traumas, sequelas, dos tantos que endividaram
Tuas tralhas?
Ou será tua sina divina não teres ninguém que te valha
Vestindo gravata ou saia?
Quem te governa, cidade
É a farófia revolucionária ou a direita canalha?
.
II
Desde Tomé que a gente paga pra ver
A utopia prevalecer
E as Coréias proliferando
(E certamente não é que falte fé ao baiano)
Continua ele votando
(Mas não passas de um ex-voto do milagre que o demo vem praticando)
.
III
(E de que valem todos os santos
Se pra baixo te ajudam os soteropolitanos?)
.
IV
E então, Salvador
Mudaste a cara do Pelô?
Tiraste de lá o povo
Tocas já outro tambor?
Os que antes lá roubavam
Passaram o ponto aos doutores?
Os traficantes trocaram
De drogas e os mercadores
Vendem outras ilusões
E o amor cotado em dólares?
.
VIII
Se teus esgotos esgotam
Teus cidadãos pacientes
Pelo menos uma máxima
Aos que vomitam concede
Quem maledicente fala
O repto consente
Se o meio ambiente exala
É inepta ou inapetente
A gerência da cloaca?
(Ela fede abertamente)
.
XVI
Que querem teus governantes?
Negócios e, negociantes
Dinheiro, como dantes
Para o terceiro milênio
Convênio com os empreiteiros
E como dantes, dinheiro
.
XX
Se aos justos difamas
E alcagüetas
Digam de mim teus ghost writers
Toda maledicência
De mim podes dizer que sou
Teu proxeneta
Já que não podes dizer que sou
Teu poeta
De mim podes dizer que sou
Teu drogado
Já que não podes dizer que sou
Teu advogado
De mim podes dizer que sou
Ressentido
Porque proíbes a esperança
Ao meu partido
Mas deixa ao menos que eu seja
O que o futuro deseja
E o que será a tua estética
Uma nova ética
.
José Carlos Capinan. Poemas; antología e inéditos. Salvador: FCJA:Copene,1996.p.99-10
(Um canto quase Gregoriano foi incluído no livro Confissões de Narciso, publicado em 1995)
***
PARTE III
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SALVADOR, SALVADOR
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ROBERTO MENDES e JOSÉ CARLOS CAPINAN
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Luminosa cidade
Espelho no mar
No céu claridade
É bonita de ver
Refletida nos olhos
Do meu amor Salvador
Não deixe o meu amor morrer
Me salve da dor
Se esse amor virar saudade
Negra na cor
Cidade da fé, felicidade
Negro amor
Quero ver nos olhos dela
Tua imagem
O amor quando nos deixa
É um beco sem saída
Me salve da dor
De um beijo de despedida…
Eu vou botar meu coração na mão
Que toca o tambor do teu afoxé
Cidade da fé, felicidade
Me salve da dor
Se esse amor virar saudade…