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SALVADOR 462 ANOS – EXALTAÇÕES E CRÍTICA

29/03/2011

Retomo a postagem neste endereço WordPress pelo menos enquanto o portal de A Tarde On Line continuar under attack e sofrendo instabilidade.

Este post dedicado aos 462 anos da Cidade da Bahia, completados hoje, dia 29 de março de 2011, se divide em três partes. Na primeira, o escrivinhador e conselheiro-mor deste blog, zédejesusBarrêto, amargurado com a degradação da “Mãe Preta”, a cidade amada, recorda em prosa poética um bom momento de reencontro com ela. Na segunda parte, o poeta José Carlos Capinan satiriza Salvador quase à maneira de Gregório de Mattos, em poema dedicado ao poeta e jornalista Florisvaldo Mattos. E na terceira parte, Capinan declara seu amor à Cidade da Bahia em letra de música que Roberto Mendes transformou num afoxé, gravado pela cantora Carla Visi.

Salvador por AZIZ

PARTE I

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texto de zédejesusBarrêto

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Queria um texto bonito, afetuoso,

para homenagear a cidade amada,

a Mãe Preta

que faz 462 anos neste 29 de março/2011.

Mas descubro-me sem inspiração.

Talvez pela amargura de vê-la tão

vilipendiada, sofrida, mal-cuidada…

Então optei por um texto que escrevi na primavera de 2008,

logo que retornei de uma viagem de trabalho a África-Angola-Luanda …

com o coração apertado de saudades.

Segue:

*

Chegança

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Sexta.

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Acordo com bem-te-vis e fogo-pagôs saudando o dia

Abro as janelas

O cheiro de mato e maresia me invade

Manhã luminosa de quase primavera-verão

O reflexo do sol nas folhas largas das bananeiras provoca

um verde exuberante

Um brilho intenso se espalha pelo tempo

Aspiro luz numa aragem pura que vem do mar, adiante, tão próximo

Ligo o rádio

Caetano canta Wando, dolente e belo

À noite tem João e violão no TCA

Nos jornais, a viagem derradeira de Waldick, do brega ao paraíso

A caminho do Ilê Opô Afonjá, ouço Mateus Aleluia, sacro-afro-barroco Angola e recôncavo

Na roça do Opô Afonjá, o branco de Oxalá

Silêncio, respeito e paz

O tempo noutra dimensão

Axé! Êpa babá!

Flutuo

No caminho dos Mares

Aprecio as torres das velhas igrejas, mirantes da fé

No ponto do buzu da Jequitaia, um grupo de 20 pessoas …

Homens, mulheres, velhos, jovens, crianças

Todos de branco, da cabeça aos pés

Riam, felizes, soltos, feito anjos

No templo gótico da Senhora dos Mares

madrinha, mulher, rainha –,

elevo-me aos céus

no rastro da intensa luz que clareia a nave vazia pelos vitrais coloridos

Só eu e ela, Mãe!

Sinto-me abençoado.

Subo a Sagrada Colina para agradecer

O padre celebra, no altar florido

O branco predomina

Nos trajes, nos panos litúrgicos, na decoração

O Senhor do Bomfim reluz no dourado que a réstia de sol alumia

Mulheres negras de torços e colares de contas coloridas

quedam-se de joelhos e reverenciam com a cabeça

o poder dos mistérios da fé

Uma brisa forte vinda das lonjuras do mar-além

varre o interior do templo e refresca as almas

Mas não apaga a chama das velas, dos corações dos devotos

O Bomfim me comove

O hino cantado pelo povo me engasga, me faz chorar

Sempre, inexplicável.

Saio da igreja em estado de graça

Fora, nas escadarias, converso, beijo e ganho brindes

das velhinhas que vendem fitas-medidas abençoadas pelo ar purificado

que cobre, perfuma, purifica e passeia na Colina Sagrada.

Dá vontade de comer um filé em Juarez, no antigo Mercado do Ouro…

Ou uma moqueca de carne no Moreira, que está fazendo 70 anos…

Ou o peixe de Lula, no Mini Cacique, da rua Rui Barbosa…

Hum! Gostosuras da Mãe Preta!

O céu está limpo, com nuvens alvas

desenhos de algodão sobre o azul infinito

A visibilidade é tamanha que diviso ao longe, do outro lado do mar

da baía de Todos-os-Santos, Orixás, Voduns, Inquices e Caboclos,

a torre da igrejinha de Vera Cruz, nítida.

O cristalino azul do mar faísca em prateadas escamas

Odoyá!

Olhando pro Atlântico sem fim

penso na vó materna, Angola

Ela nos ensinou o que é dengo, saudade, molejo, mandinga.

Agora sei,

estou chegado.

Aninho-me…

É morno e macio o colo da Mãe Preta, Cidade da Bahia.

*

(zédejesusbarreto, jornalista e escrevinhador)

O texto acima é um trecho do livro ‘Cacimbo – Uma experiência em Angola’ Solisluna Editora, 2010.

O livro ‘Cacimbo’ foi lançado na Bienal Internacional do Livro, em São Paulo, no ano passado. ‘Cacimbo’ aborda, numa prosa quase versejo, as identidades e dessemelhanças entre Luanda e Salvador, cidades fêmeas, irmãs, filhas das águas atlânticas.

Angola é vó da Bahia.

A bença, minha Mãe Preta!

Obs: O livro está à venda, nas livrarias da cidade (Pérola Negra, Cultura, Saraiva, Aeroporto, LPM …

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Salvador não salva ninguém

Mas a Bahia é a Bahia!”

(Gigica do Maciel, pensador de rua, lúcido e louco, filósofo do Pelô)


***

PARTE II

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Canto quase Gregoriano

(fragmentos)

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A Florisvaldo Mattos

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JOSÉ CARLOS CAPINAN

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Então, cidade, como estás em teu moderno estado?

E como nos tem tratado teus convertidos prosélitos?

E teus alcaides, cidade

O que de novo tem praticado?

(Estás ainda tão feia quanto teus brongos, alagados)

Seriam traumas, sequelas, dos tantos que endividaram

Tuas tralhas?

Ou será tua sina divina não teres ninguém que te valha

Vestindo gravata ou saia?

Quem te governa, cidade

É a farófia revolucionária ou a direita canalha?

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II

Desde Tomé que a gente paga pra ver

A utopia prevalecer

E as Coréias proliferando

(E certamente não é que falte fé ao baiano)

Continua ele votando

(Mas não passas de um ex-voto do milagre que o demo vem praticando)

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III

(E de que valem todos os santos

Se pra baixo te ajudam os soteropolitanos?)

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IV

E então, Salvador

Mudaste a cara do Pelô?

Tiraste de lá o povo

Tocas já outro tambor?

Os que antes lá roubavam

Passaram o ponto aos doutores?

Os traficantes trocaram

De drogas e os mercadores

Vendem outras ilusões

E o amor cotado em dólares?

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VIII

Se teus esgotos esgotam

Teus cidadãos pacientes

Pelo menos uma máxima

Aos que vomitam concede

Quem maledicente fala

O repto consente

Se o meio ambiente exala

É inepta ou inapetente

A gerência da cloaca?

(Ela fede abertamente)

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XVI

Que querem teus governantes?

Negócios e, negociantes

Dinheiro, como dantes

Para o terceiro milênio

Convênio com os empreiteiros

E como dantes, dinheiro

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XX

Se aos justos difamas

E alcagüetas

Digam de mim teus ghost writers

Toda maledicência

De mim podes dizer que sou

Teu proxeneta

Já que não podes dizer que sou

Teu poeta

De mim podes dizer que sou

Teu drogado

Já que não podes dizer que sou

Teu advogado

De mim podes dizer que sou

Ressentido

Porque proíbes a esperança

Ao meu partido

Mas deixa ao menos que eu seja

O que o futuro deseja

E o que será a tua estética

Uma nova ética

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José Carlos Capinan. Poemas; antología e inéditos. Salvador: FCJA:Copene,1996.p.99-10

(Um canto quase Gregoriano foi incluído no livro Confissões de Narciso, publicado em 1995)

***

PARTE III

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SALVADOR, SALVADOR

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ROBERTO MENDES e JOSÉ CARLOS CAPINAN

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Luminosa cidade

Espelho no mar

No céu claridade

É bonita de ver

Refletida nos olhos

Do meu amor Salvador

Não deixe o meu amor morrer

Me salve da dor

Se esse amor virar saudade

Negra na cor

Cidade da fé, felicidade

Negro amor

Quero ver nos olhos dela

Tua imagem

O amor quando nos deixa

É um beco sem saída

Me salve da dor

De um beijo de despedida…

Eu vou botar meu coração na mão

Que toca o tambor do teu afoxé

Cidade da fé, felicidade

Me salve da dor

Se esse amor virar saudade…

A CIDADE DA BAHIA E O SEU RECÔNCAVO

26/06/2010

Ilustração de GENTIL

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texto de ANTONIO RISÉRIO*

(publicado originalmente em Opinião do jornal A Tarde, em 26.6.2010)

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Me referi de passagem aqui, em artigo sobre o projeto da ponte ligando Salvador e Itaparica, a uma antevisão do sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto: a Cidade da Bahia e o Recôncavo se encaminhando para configurar a Região Metropolitana de Salvador. O governador do Estado fala hoje da ponte Salvador-Itaparica privilegiando a perspectiva da conexão com Camamu e o “baixo sul” (algum geógrafo, aliás, bem que poderia me explicar: Camamu-Tinharé, para mim, são o alto sul; o baixo sul ficaria para Alcobaça, Prado, Nova Viçosa, etc.). Mas, de modo mais imediato, temos a integração da capital e seu Recôncavo, numa área de cerca de 10 mil km², se não me falha a memória. Aliás, a BR-242, da qual a ponte deverá ser o quilômetro zero, passa por cidades que ficam no coração do Recôncavo. E, por isso, me referi a Costa Pinto – segundo Darcy Ribeiro, a maior e mais genuína vocação de sociólogo que o Brasil já conheceu.

A Cidade do Salvador e o Recôncavo nasceram juntos. Foram siameses. Ou, como diria Joyce, numa palavra-montagem do Finnegans Wake: “siamesmos”. Wanderley Pinho, em sua História Social de Salvador, enfatizava isso. Senhores de engenho tanto viviam nos canaviais quanto na cidade. Membros da Câmara de Salvador moravam em terras do Recôncavo. Escravos trocavam informações, fazendo levantes lá e cá. Terreiros de candomblé surgiram em Salvador, em Itaparica, em Santo Amaro da Purificação, em Cachoeira. Enfim, Salvador e o Recôncavo foram uma entidade integrada durante séculos. Isso só foi mudar muito recentemente. Quando as atividades de prospecção e refino do petróleo se deslocaram para cidades laterais ao miolo afrobarroco do Recôncavo. E, depois, com o Centro Industrial de Aratu e o polo petroquímico de Camaçari, que desviaram as coisas para o Recôncavo Norte, inchando Lauro de Freitas e cercanias.

Mas, antes disso, o que dizia Luiz de Aguiar Costa Pinto? No texto “Recôncavo: Laboratório de uma Experiência Humana”, nosso maior sociólogo (que tem, como seus pares, Milton Santos na geografia e Kátia Mattoso na historiografia) escreveu:

“Dois grandes fatores têm operado no sentido dessa unidade [do Recôncavo]: a Baía de Todos os Santos e a Cidade do Salvador. De fato, quer no plano estritamente geográfico, quer no mais largo sentido ecológico, o golfo tem sido o ponto focal de convergência da vida dos núcleos urbanos que em torno dele se desenvolveram; de outro lado, a Cidade do Salvador, mercado consumidor, centro político-administrativo, porto e porta de passagem dos contatos e relações com o mundo, é ponto dominante na região que margeia a baía e representa, no plano econômico, social e político, o núcleo de onde partem influências aglutinadoras sobre todo o Recôncavo, que tende cada vez mais a se transformar numa grande região metropolitana cercando a sua capital, com a qual mantém laços crescentes de comércio material, social e psicológico”.

O texto de Costa Pinto foi escrito em 1951 e reescrito em 1958. Por essa época, a conexão Salvador-Recôncavo, que vinha de inícios do século 16, começava a se desarticular. Não só pelo petróleo, é bom lembrar, como em nome de uma visão imediatista do processo baiano. Hoje, no entanto, temos a perspectiva de um reatamento. Salvador e o Recôncavo podem voltar a ser siamesmos. Aliás, acho que a nova universidade do Recôncavo poderia sair na frente dessa discussão, promovendo uma ampla releitura de escritos sobre o tema, como os de Costa Pinto e Milton Santos. Geografia e sociologia que ainda têm muito a nos ensinar.

E, aqui, volto ao tema do projeto da construção da ponte Salvador-Itaparica. A ponte pode ser a peça-chave de nossa reintegração física, econômica, social e cultural. O novo elo evolutivo que falta. Hoje, numa foto área, vemos que apenas uma parte do trabalho foi feita. A ponte do Funil faz o Recôncavo chegar a Itaparica. E a foto fica capenga. Falta fazer a outra e maior parte do trabalho. Temos Funil, temos Itaparica, mas cadê a ponte para ligar a ilha e Salvador, para completar o quadro?

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*Antonio Risério – Escritor

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MILTON SANTOS – GENTE DA BAHIA

24/06/2010

Ilustração de GENTIL

Sinto-me autorizado a pleitear a possibilidade da efetivação da estátua ou um busto do nosso Milton Santos, enriquecendo a cidade e expondo um modelo de talento e superação (Jaime Sodré)

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A MILTON SANTOS POR MERECIMENTO

ou:

TIRANOS ESPINHOS

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texto de JAIME SODRÉ*

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Permitam-me apresentar o currículo:

Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP; pesquisador 1A do CNPq; visiting professor, Stanford University, 1997/98; bacharel em Direito, Universidade Federal da Bahia, 1948; doutor em Geografia, Université de Strasbourg, França, 1958; doutor honoris causa das universidades de Toulouse, Buenos Aires, Complutense de Madrid, Barcelona, Nacional de Cuyo-Barcelona, Federal da Bahia, de Sergipe, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, Estadual de Vitória da Conquista, do Ceará, Unesp e de Passo Fundo.

Prêmios:

Internacional de Geografia Vautrin Lud, 1994; USP/1999 (orientador de melhor tese em ciências humanas); Mérito Tecnológico, 1997 (Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo); Personalidade do Ano, 1997 (Instituto dos Arquitetos do Rio de Janeiro); Jabuti, 1997 (melhor livro de ciências humanas: A Natureza do Espaço, Técnica e Tempo).

Medalhas:

Mérito Universitário de La Habana, 1994; Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico, 1995; Colar do Centenário do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1997; Anchieta, da Câmara Municipal de São Paulo, 1997; Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo, 1997.

Lecionou nas universidades de Toulose, Bordeaux, Paris, Lima, Dar-es-Salaam, Columbia, Venezuela e do Rio Janeiro. Consultor da ONU, OIT, OEA e Unesco junto aos governos da Argélia e Guiné-Bissau e ao Senado da Venezuela.

Publicou mais de quarenta livros e trezentos artigos em revistas científicas em português, francês, inglês e espanhol.

Baiano de família de professores, com o avô e avó professores primários, mesmo antes da Abolição, que o ensinaram a olhar mais para frente do que para trás. Família remediada, os pais ensinaram boas maneiras, francês e álgebra. Foi aluno interno, neste ambiente começara a ensinar antes da faculdade, ingressando na Faculdade de Direito e se formando em 1948.

O fato: segundo o mesmo Milton, seu maior desejo era a Escola Politécnica em Salvador – “havia uma ideia generalizada que esta escola não tinha muito gosto de acolher negros, então fui aconselhado fortemente pela família (tinha um tio advogado) a estudar Direito, e daí mudei para a Geografia, que comecei a ensinar desde os quinze anos”. Havia uma crença na sociedade da época que na Politécnica os obstáculos eram maiores.

Escrevera no jornal A Tarde, como correspondente na região do cacau onde lecionava, por iniciativa do ministro Simões Filho que o descobriu para a imprensa. Ensinara na Universidade Católica e preparava-se para entrar na pública, onde fez concurso em 1960, após o doutorado em Geografia na França.

O pleito:

Quando saíamos do Colégio Central, em turma, na direção da Sé, era comum a brincadeira entre as estátuas do Barão do Rio Branco e Castro Alves, diziam:

Castro Alves estendia a mão em direção ao Barão pedindo uns trocados para libertar os negros, Rio Branco, com a mão no bolso, dizia “tenho mais não dou”.

Coisas da juventude.

Recentemente, a Semur [Secretaria Municipal da Reparação, de Salvador] solicitou-me uma relação de estátuas e monumentos de negros e negras em nosso espaço urbano, e inspirou-me para o que segue.

Diante do currículo exposto do professor Dr. Milton Santos, sinto-me autorizado a pleitear, quem sabe à própria Semur, a possibilidade da efetivação da estátua ou um busto do nosso Milton Santos, enriquecendo a cidade e expondo um modelo de talento e superação. Ainda de posse de uma das suas brilhantes frases, que estaria no monumento merecido:

Quem ensina, quem é professor, não tem ódio.

Em tempos de cotas, melhor local não seria adequado, senão em pleno ambiente acadêmico da Escola Politécnica, cumprindo um desejo do grande mestre, calado outrora pela mentalidade maldosa, inibidora da época. Aposso-me de uma frase, lugar comum neste gesto, na certeza do apoio de muitos, “ao mestre com carinho”.

Esta justíssima homenagem traduzirá, com certeza, a admiração do povo brasileiro aos seus filhos ilustres, registrando aqui homenagem a alguém que o mundo não se cansou de reconhecer e homenagear. Placidez, serenidade, sorriso permanente aberto, humanidade, sabedoria, sem perder a ternura diante das dificuldades, poderão inspirar o escultor a modelar, em material nobre, este nobre baiano.

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*Jaime Sodré – Professor universitário, mestre em História da Arte, doutorando em História Social

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Foto de LUIZ CARLOS SANTOS

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UMA NOVA FORMA DE OLHAR

E COMPREENDER O MUNDO

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texto de LIDICE DA MATA*

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A Câmara dos Deputados prestou homenagem ao geógrafo e professor Milton Santos, um dos mais brilhantes e respeitados intelectuais do nosso tempo, que faleceu há nove anos, deixando uma imensa lacuna, mas também nos legando uma obra incomparável que hoje é referência em todo o mundo. Não é nenhum exagero dizer que Milton Santos fundou uma nova Geografia, reescreveu os fundamentos desta disciplina, nos ensinando uma nova forma de olhar e compreender o mundo.

Negro, nascido em Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia, nunca se deixou abater pelo racismo, pelo preconceito social e nem pelas imensas dificuldades que enfrentou ao longo dos seus 75 anos de vida. Milton Santos foi um vencedor, um mensageiro da esperança, um guerreiro da palavra que, sempre com um sorriso amável, nunca parou de lutar e nos legou um arsenal de ideias sobre a problemática do mundo globalizado e as possibilidades de construirmos um futuro melhor para todos.

Nada mais apropriado para homenagear esse brasileiro de espírito crítico e inovador do que discutir a sua obra, debater e divulgar as suas ideias. Por isso, a Comissão de Educação e Cultura, da qual eu faço parte, promoveu no mês de maio, em que se comemora o Dia do Geógrafo, um seminário que contou com a participação de muitos parlamentares e representantes do meio acadêmico.

Neste momento, em que vivemos a mais grave crise do capitalismo no mundo, considero necessária e oportuna uma reflexão sobre o pensamento de Milton Santos. Ele nos inspira novos caminhos, nos aponta o rumo de uma outra globalização, em que o desenvolvimento seja voltado para o homem e não apenas para o beneficio das corporações nacionais e transnacionais.

Brasileiro, apaixonado por sua terra, Milton Santos é um pensador universal. E nesse aspecto, devemos destacar que não foi por acaso que, em 1994, ele recebeu o Prêmio Vautrim Lud, considerado o Nobel da Geografia. Sem dúvida o coroamento de uma trajetória que começou na Bahia, onde além de professor, foi jornalista e um intelectual engajado, um combatente das causas políticas e sociais.

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*Lidice da Mata – Deputada federal pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB)

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Foto de LUCIANO DA MATA | Agência A Tarde – 14.7.1997

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MILTON SANTOS, UMA BIOGRAFIA

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texto de FERNANDO CONCEIÇÃO*

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Em vida ele repudiaria o uso de seu nome para homenagens vãs. Cuidado, portanto. Em junho de 2011 completam-se 10 anos da morte do geógrafo Milton Santos, baiano para o qual setores da política e da intelligentzia local deram as costas. Tanto assim que seus restos mortais jazem em cemitério de São Paulo, cidade que o acolheu nos seus profícuos anos de projeção intelectual pós exílio forçado pela ditadura de 64.

A obra miltoniana, zelada por Marie-Helène, sua viúva, vem toda ela sendo republicada pela Editora da Universidade de São Paulo, para usufruto de quem queira. Mas afora especialistas, é certo que muitos dos que vêm se apropriando do seu nome quase nada leram dele. Ou ao menos prestaram atenção no que disse. Fariam melhor à sua memória se a difundissem apropriadamente, estimulassem a adoção de seus escritos pelas escolas possíveis. Os mesmos não se restringem à Geografia, mas expandem-se a outras áreas do conhecimento: filosofia, história, planejamento urbano, educação, economia, comunicação…

É pretensão minha entregar ao público brasileiro, daqui a um ano, a biografia de MS. Livro que narre sua trajetória, desde o nascimento em Brotas de Macaúbas. A 12 meses da efeméride, tento costurar apoios. Falta prosseguir a pesquisa necessária ao levantamento de dados, informações e depoimentos. Considerável parte desse material acha-se lá fora, por onde buscou seu sustento. Países europeus, africanos, da América Latina, Estados Unidos, Canadá e mesmo Haiti, onde se casou pela segunda vez. Também Brasil afora. O custo do trabalho não é baixo. Requer investimento que não está à mão. Mas a importância daquele intelectual exige agora dedicação quase exclusiva à tarefa. Autorizada por ele, aliás.

Cumprir a meta é o desafio. Há dificuldades naturais de percurso, objeções advindas da natureza independente do personagem a ser retratado. Daí, é de valor inestimável qualquer informação, detalhe, documento a ser oferecido para a completude da obra. Valho-me de A Tarde, no qual ele trabalhou por anos, para solicitar a colaboração de todos os que possam fazê-lo. Milton Santos, patrimônio do Brasil, é para ser rememorado sempre.

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*Fernando Conceição – Jornalista, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom/UFBA), biógrafo autorizado de MS

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Foto de MARIA ADÉLIA DE SOUZA | SescTV

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WALY, A FERA FAISCANTE

13/06/2010

Caricatura de WALY SALOMÃO criada por GENTIL

Minha admiração por Waly [Salomão] é imensa […] Daí a felicidade em ver homenagens como a biblioteca de Ribeirão Preto e o centro cultural no Rio, realização do grupo Afro-Reggae. Mas e a Bahia? Existe alguma coisa feita aqui para Waly?

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texto de ANTONIO RISÉRIO*

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Em 2004, andando por Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, sob a fuligem de canaviais queimados, vi à distância uma construção de arquitetura inconfundível. Um prédio de João Filgueiras Lima, Lelé. Curioso, fui ver o que o prédio abrigava. E tive uma surpresa que me deixou especialmente alegre. Era a Biblioteca Waly Salomão. Uma homenagem de Ribeirão Preto ao inventivo poeta-guerreiro nascido em Jequié, na Bahia. É claro que Waly mereceu a homenagem.

Meses atrás, no jornal O Globo, vi que estavam na reta final as obras do Centro Cultural Waly Salomão, agora inaugurado, na favela de Vigário Geral, no Rio. E, mais uma vez, Waly merece a homenagem. Pelo que fez e por ser quem foi.

O poeta-escritor que nos deu a prosa de Me Segura Queu Vou Dar um Troço. O poeta-letrista que nos deixou canções como Mel, Cabeleira de Berenice e Vapor Barato.

O poeta-editor que trouxe à luz a revista Navilouca e Os Últimos Dias de Paupéria, reunindo escritos de Torquato Neto.

O poeta-produtor cultural que, com Antonio Cícero, organizou os debates do Banco Nacional de Ideias, trazendo ao Brasil personalidades intelectuais como Horty, Gellner e Todorov, com o qual tive o prazer de debater em São Paulo sobre diversidade cultural.

O poeta-executivo, administrador público, que coordenou aqueles que talvez tenham sido os últimos carnavais baianos culturalmente relevantes.

O poeta-artista visual que nos brindou com a série colorida dos Babilaques.

O poeta que queria ultrapassar barras e bordas, não ser “si-mesmo”, mas tudo que fosse ou significasse um outro. O poeta que sabia e dizia que a memória não passa de uma ilha de edição.

Ao apresentar um livro seu, Armarinho de Miudezas (publicado por Myriam Fraga e Claudius Portugal, em importante coleção editorial da Fundação Casa de Jorge Amado) – cuja lembrança sempre me traz à mente o texto “Bahia Turva”, porrada na pasmaceira da província –, tentei fazer uma síntese de como eu o via, chamando-o “a fera faiscante” (àkàtà yeriyeri, nos orikis iorubanos), em referência ao orixá Xangô, dono de sua cabeça.

Curiosamente, aliás, Xangô é o orixá da retórica, do discurso, da eloquência. O senhor do axé na palavra. E, nesse sentido, Waly, que tinha uma capacidade oral extraordinária, era mesmo uma encarnação total da figura do filho de Xangô. Tinha o dom do improviso, da língua afiada, da frase desconcertante, do achado irônico-humorístico que levava todos às gargalhadas.

Naquela apresentação, entre outras coisas, escrevi: “Não há lugar aqui para o temor, a prudência, a reverência paroquial. Pensamento agudo, voz de trovão, o baianárabe Waly (de walid) é um happening ambulante. Um farsante declarado e colorido num ambiente cultural infestado de beletristas seriosos e cinzentos. Inimigo público número um do meio termo, da mesmice gustativa, Waly é uma verdadeira montanha russa de grossura e de finesse, indo das baixarias de botequim à suprema limpeza do construtivismo de Maliévitch. Sua figura é a hipérbole. O leitor de Rimbaud e Nietzsche circulando pelo morro do Estácio, da Mangueira, ou em meio aos tambores sagrados do candomblé. Curiosidade ibnkhalduniana. Estrada do excesso. Um homem livre como as formas de Arp”.

Minha admiração por Waly é imensa. Dos tempos de minha juventude, quando o conheci chez Caetano Veloso, aos dias em que trabalhamos juntos, com ele na direção do Instituto Nacional do Livro, em Brasília. Waly animava e alegrava nossas vidas na cidade de Lúcio Costa.

Daí a minha felicidade em ver obras-homenagens como a biblioteca de Ribeirão e o centro cultural no Rio, realização do grupo Afro-Reggae.

Mas e a Bahia? Existe alguma coisa feita aqui para Waly? Algum projeto, ao menos? Que eu saiba, não. Waly, na linha de um Gregório de Mattos, dizia, num texto publicado no jornal Folha de S. Paulo, que a verdadeira padroeira de Salvador era “Nossa Senhora do Empata Foda”. Tudo aqui emperra, não anda, não acontece. Acho até que ele deve estar aí em alguma fila, aguardando que antes a Bahia faça uma Casa Dorival Caymmi.

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*Antonio Risério – Escritor

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MARIA SAMPAIO – GENTE DA BAHIA

13/06/2010

MARIA SAMPAIO em sua casa, no bairro do Itaigara, em Salvador. Foto de IRACEMA CHEQUER | Agência A Tarde – 19.6.2008

Brincou de carrinho, de escrever, de picula, de desenhar e pintar, de tirar retrato. Passada dos 30, assume a fotografia profissionalmente. Aos 50 escreve”

Maria Guimarães Sampaio

Autodefinição em seu blog CONTINHOS PARA CÃO DORMIR [http://continhosparacaodormir.blogspot.com/], criado em 2008

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FICAM AS IMAGENS,

OS LIVROS, A SAUDADE…

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texto de RONALDO JACOBINA*

[publicado no jornal A Tarde do dia 3 de junho de 2010]

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Após dez anos de luta contra um câncer de mama, a fotógrafa e escritora Maria Sampaio morreu ontem [2.6.2010], aos 62 anos, no Hospital Português, onde esteve internada nos últimos dez dias. O corpo será cremado hoje [3.6.2010], no Cemitério Jardim da Saudade (Brotas).

De acordo com o único irmão, Artur Sampaio, a pedido dela, as cinzas deverão ser distribuídas entre o túmulo dos pais (o artista plástico Mirabeau Sampaio e Norma) e os rios Subaé, em Santo Amaro da Purificação (Bahia), e Sena, em Paris.

Vamos fazer a vontade dela. Era uma pessoa muito especial e valente, deixou tudo organizado antes de partir.

Considerada uma das mais importantes fotógrafas da Bahia, a partir dos anos 1970, Maria Sampaio registrou com o seu olhar sensível importantes momentos da história cultural do Estado.

Muitos desses registros permanecerão eternos, como as imagens que fez para capas de discos e livros ou para as publicações que lançou, como Recôncavo, editado pelo Desenbanco em 1985.

Dona de um rico acervo da família Velloso, de quem sempre foi muito amiga, Maria foi a autora das fotos que ilustram as capas dos discos Cores & Nomes, de Caetano Veloso (1982), e Olho d’água, de Maria Bethânia (1992).

Não sei como viverei a partir de agora sem a amizade de Maria. Ela era mais que uma irmã para nós, uma filha para minha mãe – diz, emocionada, Mabel Velloso.

Fotografia

A menina que um dia sonhou ser cantora ganhou admiração e prestígio em outras artes. Primeiro como fotógrafa, depois como escritora.

Não podia nunca ser cantora porque era muito desentonada – revelou em julho de 2008 à revista “Muito” [suplemento dominical de A Tarde].

Apesar de não ter enveredado pelo caminho da música, foi uma amante da canção popular, especialmente do fado, ritmo português que a uniu à cantora Jussara Silveira.

Há 15 dias, ela me disse que ficaria boa para irmos a Lisboa ouvir fados juntas – diz Jussara.

Como a natureza a desproveu dos atributos necessários para cantar, o talento a transformou numa artista. Visual e literária.

Maria foi uma profissional de extrema importância para a história da fotografia na Bahia – declara o colega Aristides Alves.

Foi a pedido dele que ela escreveu um texto para o livro A fotografia na Bahia, lançado em 2006.

Companheira de muitas décadas, a fotógrafa Célia Aguiar realizou vários trabalhos em parceria com Maria.

Era minha melhor amiga, minha companheira. Vivemos muitas coisas juntas: moramos juntas, viajamos juntas e fotografamos juntas. Tivemos uma vida juntas.

Para Célia, Maria sempre gostou de trabalhar coletivamente.

Ela agregava suas ideias às dos colegas de profissão, uma das pessoas mais generosas que conheci.

Literatura

Nos últimos anos, Maria passou a se dedicar cada vez mais à literatura. Desde que escreveu seu primeiro livro Estrela de Ana Brasila (2004) e, depois, Rosália Roseiral (2006), ambos pela Record, a escritora descobriu esta nova vocação. Tanto que, no ano passado, o editor Claudius Portugal, admirador e amigo de longa data, a convidou para publicar Continhos para cão dormir, pela editora P55.

Menos de um ano depois, mais um livro: Continhos para cão dormir II.

Maria era uma grande contadora de histórias e conhecia como ninguém os hábitos da sociedade baiana. Ela escrevia sobre isso com muito humor.

Foi em Maria que a dramaturga Aninha Franco se inspirou para escrever a personagem Guima do livro As Receitas de Mme Castro (Ed. P55).

Maria era uma amiga generosa, bem-humorada, ela é aquela personagem. Fiz o livro para ela e sobre ela.

E é assim que Guima (ela se chamava Maria Guimarães Sampaio) será lembrada: baiana arretada, bem-humorada, generosa e, sobretudo, amada.

MARIA SAMPAIO. Foto de IRACEMA CHEQUER | Agência A Tarde – 19.6.2008

  

NOTA DO EDITOR – Ao visitar hoje o blog de Maria Sampaio [http://continhosparacaodormir.blogspot.com/] CONTINHOS PARA CÃO DORMIR, encontrei este lindo e emocionante comentário assinado por Jorge Velloso:

 

Tucão está em novo estúdio

 

Se fossem reveladas fotografias de nossos corações hoje, com certeza sairiam sem cor, sem preto nem branco. Afinal, nossa fotógrafa, nossa companheira de farra, nossa tia, nossa amiga, nossa Maria Sampaio se despediu. Cansou, se retou (como ela mesmo gostava de falar) e foi fazer novos retratos, num estúdio lá por cima.

Se a internet do Céu estiver em boas condições, com certeza logo veremos fotos de São Jorge passeando de cavalo no blog de Maria. Com certeza veremos fotos de São Francisco brincando com Tieta e outros cachorros no Continhos para Cão Dormir. Veremos fotos de Dona Zélia com Jorge ao lado de Dona Norma e Dr. Mirabeau…

Ah! Com certeza, essa hora Maria está toda enturmada. Já deve ter arranjado um monte de empregos free lancers e está todaserelepe fazendo até foto 3×4 de Jesus Cristo, enquanto Voltaire Fraga faz de São Benedito.

Lá por cima deve estar um salseiro, porque do jeito que Maria era aqui embaixo, ela já deve ter contado um monte de casos engraçados que ela ouvia em Santo Amaro e claro, já deve ter mandado um monte de anjo chato à merda, porque muito puritanismo com ela não cola.

Só espero que ela não olhe aqui para baixo porque Maria vai seretar se vir que estamos todos tão tristes, tão saudosos e com a fotografia da saudade estampada no peito. Ela pediu que os amigos estivessem reunidos na hora que ela mudasse para o estúdio do primeiro andar, e aqui estamos, mas é nosso dever fazermos o possível para colocar pelo menos um pouco de cor no retrato deste adeus.

Uma boa saída é lembrarmos as gargalhadas de Maria. Assim, instantaneamente já vamos ser contagiados com o flash da felicidade e colocaremos um pouco de cor na foto de um dia tão triste.

Siga em paz, Tucão, e obrigado por ter dado tanto bem-querer a mim e à minha família. Ah! Quando eu te encontrar no novo estúdio vou querer que você faça fotos minhas tão bonitas como as que fez no meu casamento.

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Jorge Velloso

2 de junho de 2010

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GINGA FUTEBOL ARTE

09/06/2010

Ilustração de GENTIL

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A recriação do futebol [no Brasil] começa com a participação do negro. Faz com que a linguagem do futebol seja envolvida por valores procedentes de culturas milenares

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texto de MARCO AURÉLIO LUZ*

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O célebre Mario Filho, autor do livro O negro e o futebol brasileiro, observa a reação dos jornais ingleses referindo-se à Seleção brasileira em excursão na Europa em 1956 as vésperas da conquista da Copa do Mundo de 1958: “O futebol brasileiro tinha tudo de um circo: o comedor de fogo, o engolidor de faca, os acrobatas, os trapezistas, até os palhaços. Só não tinha essa coisa elementar que era um time”.

Para muitos o futebol brasileiro é incompreensível. Isso porque a fonte de sua inspiração nasce da civilização africana que sofre de forte recalcamento pelos sistemas neocoloniais europocêntricos. Essa recriação do futebol começa com a participação do negro. Faz com que a linguagem do futebol seja envolvida por novos valores procedentes de culturas milenares.

O jogo que era uma elaboração das formas técnicas industriais de produção, a divisão de funções do trabalho a serem cumpridas da melhor maneira visando unicamente o gol, que significa objetivo, produtividade, tem agora uma nova pedra angular, isto é a noção de odara que em língua yoruba significa bom e bonito simultaneamente.

Nessa bacia semântica de formas e movimentos o técnico não se separa do estético é uma e mesma coisa. Então a ocupação do tempo e do espaço do jogo sofrerão mudanças radicais. A mesma indagação sobre a capoeira para os de fora da roda, se é dança, se é luta, se é religião, se é jogo, acontece com o que viemos a chamar de futebol arte.

Assim como a capoeira, a base do jogo é a ginga. A ginga é o movimento que incorpora a síncopa, o vazio que constrói a esquiva que torna o jogador invisível para o adversário. Esse movimento se faz ao sabor do ritmo do balanço, que os afro-americanos chamam de suingue. O nome ginga creio eu deriva como homenagem à Rainha Ginga Ngola Bandi Kiluanji. Ela que enfrentou os colonialistas escravistas de Portugal e é considerada a rainha invisível por suas táticas de deslocamentos, conseguindo manter o reino do Ndongo (Angola) independente, é lembrada nos autos de coroação dos reis de Congo nas congadas do Brasil.

Outra referência importante se desdobra da noção do espaço sagrado. Nas tradições cristãs o espaço celeste é o lugar do sagrado. Toda uma estética se constitui dessa noção, desde as narrativas celestiais às pinturas das igrejas e sua arquitetura se projetando para o alto. Assim como a dança “clássica” o ballet com seus saltos para o alto, o futebol inglês não foge desse valor, bola para cima e a cabeçada faz da cabeça o lugar onde o espírito se separa ou controla a matéria ou pecado de onde deve sair o gol.

Muito diferente é a noção do espaço sagrado nas culturas afro-brasileiras. Aqui é o interior da terra que guarda e contém o mistério da criação, de onde se celebra a ancestralidade. Então toda uma estética está voltada para baixo, em termos de rituais, complexas danças com gestos simbólicos, onde todo o corpo e os pés em contato com o solo sacralizado realizam a comunicação entre esse mundo e o além.

Assim como a capoeira original se faz ao rés do chão o futebol arte evolui rente ao gramado.

Por fim, tendo na origem o livro sagrado, a comunicação exigindo a concepção do corpo ascético, do corpo inerte, educado para obter conhecimento apenas através da leitura ou de imagens, exacerbando a relação olho cérebro, característica das culturas europeias, faz com que se desdobre na formação de jogadores de futebol o que chamamos de cintura dura.

Por outro lado, nas culturas afro-brasileiras o acesso ao saber faz um apelo a todos os sentidos, promovendo a sinergia entre eles e ao mesmo tempo exigindo uma comunicação direta intergrupal, onde se dá e se realiza o desejo de estar junto, em interação grupal se fortalecendo, podendo se divertir e manifestar a alegria. A música percussiva, a dramatização que envolve a estética do sagrado fazem do corpo em movimento um caminho de adoração de entidades ancestrais.

Daqui se desdobra também essa característica lúdica do nosso futebol arte, e através dela somos o país com mais conquistas da Copa do Mundo.

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*Marco Aurélio Luz – Doutor em Comunicação, licenciado em Filosofia, professor, escritor, escultor

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CAETANO VELOSO: “OU NÃO?”

31/05/2010

Caricatura criada por CAU GOMEZ

Não me importo com Dilma ou Serra. Sou Marina de todo o coração”

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texto de CAETANO VELOSO

(reproduzido do jornal A Tarde, que publicou este artigo simultaneamente com O Globo, em 30.5.2010)

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Mesmo que tenha sido uma confusão nascida da ignorância de alguns humoristas, é uma honra para mim ter herdado o bordão “ou não” de Walter Franco. Há quem diga que mereço, não a proximidade de Walter, mas as sugestões pejorativas do bordão. Muita gente vê indefinição suspeita no que para mim é independência política. Em tempos de eleição essas reduções tornam-se mais grosseiras. Pois bem: vou pensar em voz alta. Não me importo com Dilma ou Serra. Sou Marina de todo o coração. Se tiver de escolher entre os outros dois, acho que prefiro Dilma, já que, como eu disse na entrevista ao “Estadão” (que ficou famosa por causa da palavra “analfabeto”), Serra está à esquerda da política econômica de Lula (a matéria no Globo com Serra dizendo a Miriam Leitão que “o Banco Central não é a Santa Sé” — com aquelas fotos apavorantes — poderia ser criticada pela “Caros amigos” como alarmismo suspeito, imposto pelo poder dos rentistas). Ou seja, eu prefiriria Dilma porque ela defende a independência do Banco Central.

Aconselho a leitura de “Aqui ninguém é branco”, de Liv Sovik. É a mais complexa e corajosa reflexão sobre raça no Brasil dentre as que vêm do lado dos racialistas. Mas meu comentário, dirigido a Felipe Hirsch, contrastando o racismo popular com o racismo de elite, eu o reenviaria a Sovik. Acabo de chegar da inauguração do Centro Cultural Waly Salomão, em Vigário Geral: grupos de garotas locais, pretas, mulatas e brancas, chegavam bem arrumadas e tomadinhas-banho, sorrindo entre si. Liv diz, com ironia, que “têm razão os que contrastam os EUA com o Brasil, valorizando o quadro brasileiro: para os brancos, especialmente, ele é muito melhor”. Nem uma gota de ironia em minha recomendação do livro. Leiam e verão que ela vai muito além dessa canelada.

Tenho 67 anos. Cresci, amadureci e envelheci ao som da “Aquarela do Brasil”, o nosso hino nacional oficioso, em cujo segundo verso o país é chamado de “mulato inzoneiro”. Nunca vi ninguém estranhar o uso da palavra “mulato” para definir o país. Mas nada me dizia que não houvesse brancos no Brasil. Meu pai era mulato. Minha mãe é branca. Sendo ela de extração mais humilde, era ela quem usava a expressão popular “eles que são brancos, que se entendam”, quando se alegrava por não ter de entrar em certas disputas. Mesmo que fossem entre meu pai e Luís de Gaspar, um preto retinto que era amigo dele. Gaspar era o português que tinha uma loja de ferragens onde Luís trabalhava. Depois Luís abriu a sua própria. Todos diziam “segunda é dia de branco” — quer dizer: dia de trabalharmos para os patrões. Isso independentemente da cor de quem dizia — e mesmo da dos patrões. A ideia arraigada de que somos um país mulato não nos impedia de distinguir explicitamente entre brancos e pretos, ou mulatos, caboclos, sararás. E sempre foi evidente que “branco” indicava vantagens estéticas, econômicas e sociais.


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Liv vai além do habitual: fala da invisibilidade do branco e analisa a mídia. Tudo bem que ela comente textos da “Veja”, mas por que nem ela comenta textos em que Paulo Francis, o mais adorado e imitado jornalista brasileiro, louvava a retomada do projeto de eugenia por trabalhos como “A curva do sino”, que diz provar ser a inteligência média dos estudantes negros americanos inferior à dos brancos? Exibir simpatia por coisas assim era reação aos movimentos negros. Esses movimentos eram necessariamente racialistas. Passou a haver, então, uma reação antirracialista, como, por exemplo, a de Antonio Risério, e uma reação racialista, como a de Francis. A menina que disse a Liv, em Salvador, “aqui ninguém é branco” tem posição próxima à minha, que é próxima à de Risério e avessa à de Francis.

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O presidente Lula ensaiou o anúncio de uma negociação de peso com o Irã. Vejo Lula como um grande personagem épico. Ele pode ser atraído pelas baixezas do populismo. Mas, até aqui, tem pesado mais sua vocação para representar o que o Brasil tem de original. Parte da sua euforia — que pode ser intragável — é reconhecimento disso. É narcisismo salutar, abençoada vaidade histórica. A tentativa de costurar um papo entre os aiatolás e a capitalistada tem, por mais que a analogia com Chamberlain (lembrada por Diogo Mainardi) proceda, mais peso do que todas as outras bolas na trave que ele e Amorim deram antes.


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Sou anticarlista, não fundaria a Embrafilme, não julgo Pinochet pelo que ele deu de útil ao Chile. “The Economist”, falando do óleo no Golfo do México, diz que “o congresso americano deve endurecer a vigilância e aumentar as penas para os faltosos. Mas, infelizmente, não haverá nenhum esforço para dar conta dos maléficos efeitos colaterais do petróleo. Pois vazamentos estão longe de ser o efeito mais deletério da dependência do petróleo de que sofrem os EUA: aquecimento global e financiamento de déspotas estrangeiros vêm no topo da lista”. Essas são palavras editoriais de uma revista liberal inglesa. É por coisas assim que os princípios liberais resistem mais em mim do que a hipótese comunista. O que se sobrepõe a ambas as visões é o sebastianismo de Agostinho da Silva. Este era claramente antiliberal em economia, mas tinha horror a regimes de força. Muitas das suas tiradas são espetaculares. A minha preferida é: “Portugal já civilizou Ásia, África e América — falta civilizar Europa”. Gosto porque falamos português. O mundo lusófono tem sido, há já séculos demais, um ridículo histórico. A mera existência do Brasil parece dizer “chega!”.

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De bola, flores e abandonos

30/05/2010

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texto de zédejesusbarrêto*

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Queria só falar de flores neste final de outono. Ou de bola, apenas, de olho na África do Sul. Queria ouvir o grito de GOOOOL feito um signo sonoro único, universal, chamando a paz, congregando a humanidade, estabelecendo a igualdade humana.

Porque diante da bola somos todos um, iguais, independente de origem, cor, crença, ideologia, sexo, idade, tamanho…

A bola é o signo mais acabado de Deus. Não tem início, não tem fim… plena de mistérios, grávida de encantamentos. Fêmea!

Bola… Alfa e ômega. Universo, planeta terra, útero, cabeça, gota, ponto, grão, quietude e movimento, tudo!

Flores à bola, todas! Rosas, rosas de todos os tons, e orquídeas, cravos, margaridas, jasmins, magnólias, angélicas, gérberas… Flores à bola!

E que venha a Copa, que os olhos se abram para a África. Não com olhos de cobiça. Mas com o sentimento de reencontro com a nossa humanidade. Simples, pó (lodo e amálgama), semente.

Que o milagre da Bola nos permita ver, compreender a humanidade, pensar num novo amanhã… a partir da África-Mãe! Ave, deusa Bola!

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Vistas turvas

O noticiário engajado mostra, os marqueteiros do poder me empurram, o presidente Lula brada convicto e eu até quero acreditar que a pobreza diminuiu de verdade, está mesmo quase que acabando ‘como nunca antes neste país’! Pronto. Que bom que fosse!

Pois ando pelas ruas e praças centrais de minha Cidade da Bahia e tropeço em molambos humanos arriados pelas calçadas, famílias inteiras dormindo sobre papelões na praça dos Mares, de Nazaré, da Piedade, sob marquises e viadutos, numa miséria, num desamparo, num abandono de cortar coração.

Carros, buzus, transeuntes passam lotados, nem olham, parece que nem se dão conta… feito os governantes. Esses não contam, já não fazem parte dos números, das estatísticas… quem sabe nem mais humanos como nós serão.

Viajeiro, passo por cidades menores do interior sertanejo e deparo-me com pedintes pra todo lado, bodegas cheias de cachaceiros desdentados, os posto de saúde abarrotados, meninas barrigudas já com criança nos braços e olhos embaçados, envelhecidas e mal vestidas, jovens perambulando sem ter o que fazer, aquela feira murcha, a desgraceira das drogas desgraçando tudo e, em cada esquina, relato de violência de todo tipo e sem controle, às portas. Balas que matam é o papo, antes da bola e da Copa.

Ah, vejo circulando muito carrão, picapes bonitas rasgando estrada voando na contramão… deve ser a tal ‘nova’ classe média de que tanto falam. Passam tão azoados que nem dá tempo de ver os meninos e meninas na beira da estrada vendendo frutas e bichinhos do mato, pedindo esmolas, molambentos. Lembro-me dos carros-de-boi cantando dolências estrada afora.

Acho que a idade andou me deformando a mente. Ou careço de um daqueles óculos 3D – dos que se usam no cinema pra pessoa ‘entrar na realidade’ – pra que eu possa enxergar direito as coisas.

Tô esperando o horário eleitoral gratuito, em agosto, pra desanuviar. Lá é que a gente vê coisa bonita e o coração ufana!

Crendeuspai! Onde perdi minha esperança?

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Atentado ao Pelô

Desafio qualquer autoridade a, sozinha no seu carrão, estacionar num dos estacionamentos oficiais pagos da área do Pelourinho, à noite. Escuridão total, nem dá pra enxergar os carros, sem uma viv’alma lá dentro, um terror! O serviço é uma porcaria, despreparo e falta de educação na porteira. Insegurança absoluta, um convite aos bandidos, risco total, dá medo de verdade. Inconcebível manter uma grande empresa do ramo (???) prestando aquele (des)serviço. Afugenta qualquer um. Não vão lá, pelamôdedeus!

O jeito é mesmo estacionar nas ruas próximas/distantes: Chile, Misericórdia, Ajuda… onde os malandros assediam e retomar o volante, já mais tarde, é um risco.

Por essas e outras o Pelô está esvaziado, entregue a drogados e traficantes, sobretudo à noite. Cara de abandono. São João vem aí, Copa do Mundo também… É esse o serviço que oferecemos, é assim que queremos chamar as famílias, os turistas para festejar?

Enquanto isso, o ‘projeto de ‘re-re-revitalização do Centro Antigo’ rola, há anos, em blá-blá-blás de gabinetes.

Sinto falta do brado dos movimentos negros baianos: ‘Salvem o Pelô!’ Cadê? Só o mestre Clarindo clama? Quero o ijexá do Gandhy, os tambores do Olodum, o baixo do reggae, os berimbaus angoleiros clamando, gritando em pedido de socorro. O Pelô chora de desamparo.

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Ler é viver

Releio aos poucos e pela terceira vez ‘Viva o Povo Brasileiro’ do baiano João Ubaldo Ribeiro. A cada releitura mais fantástico ainda. É o nosso ‘Cem Anos de Solidão’, a saga latinoamericana do colombiano Gabriel Garcia Marquez.

O texto e a abordagem histórica de Ubaldo, que mais recentemente lançou o belo ‘O Albatroz Azul’, são brasileiros e baianíssimos. E tá rebocado o baiano que não ler. Ubaldo é essencial.

Os versos de Pessoa, a prosa de Ubaldo, os toques de Verissimo, os fraseados de Millor… Quedo-me, diante deles, pequeno.

Mas insisto, aqui e ali, com minhas palavras toscas, letras em garranchos.

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PS: – Elogiável, sob todos os aspectos, a lei do dep. Lobbe Neto (PSDB-SP) sancionada esta semana pelo presidente Lula que prevê a instalação de bibliotecas em todas as escolas públicas e privadas do país, num prazo de 10 anos. Acho o prazo longo, mas… já é um adianto, arre! Sem leitura não saímos desse atoleiro.

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Ói a Copa!

… mas a Copa do Mundo da África tá em cima e, quando a bola rola, a vida quica com ela, gracejante. Só que o mesmo grito de gol, que empolga, entristece. O goleador vibra, o goleiro chora. A vida é uma bola.

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Pensamentando…

O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”

(João Guimarães Rosa)

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*zédejesusbarrêto, jornalista e escrevinhador (26mai/2010)

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URBANISMO SUSTENTÁVEL por Lourenço Mueller

02/05/2010

Ilustração de GENTIL

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David Byrne faz a apologia da bicicleta. Vem usando-a ao longo de anos como forma de deslocamento e “percepção dos ritmos e dinâmicas características” das metrópoles e cidades que atravessou

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ECOBAIRROS + ECOVILAS = ECOCIDADES?

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texto de LOURENÇO MUELLER*

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Em princípios de abril os jornais anunciaram a chegada a esta cidade [Salvador], para uma conferência, da urbanista May East, ex-roqueira, hoje dirigente de uma fundação ecológica escocesa que prega a minimização das cidades e sua entronização ecológica.

Foi publicado este ano o livro Diários de Bicicleta (SP: Manole, 2010) do conhecido band leader do Talking Heads, David Byrne, também escocês, com prefácio de Tom Zé: forte conteúdo crítico sobre certas cidades e visão de futuro do urbanismo dito sustentável.

Pergunto-me porque artistas – neste caso ligados à música – demonstram essa preocupação com o urbano. Porque mudam de profissão, ou escrevem livros sobre o tema ecologia urbana, mostrando o perigo do aquecimento global ou o equívoco do automóvel nas grandes cidades. Porque “saem na frente” de outros profissionais, até mesmo dos urbanistas e arquitetos, que já deveriam ter levantado esta bandeira há mais tempo e sobretudo dos políticos, que não conseguem perceber a incondicional, superlativa importância do urbano.

Talvez a arte, em sua sensibilidade a situações concretas, faculte aos que a praticam essa noção aguda de perigo iminente, como no conhecido conteúdo imagético da pintura Guernica (1937) de Pablo Picasso (1881-1973), prévia antifascista do horror da guerra civil espanhola.

Sem a mesma genialidade do pintor fica difícil ilustrar a imanência perigosa que as cidades modernas representam para a humanidade, mas tal esforço merece crítica dialética e elogios.

Entrevistei May East, fui à sua conferência e li o livro de Byrne.

Posso dizer que as ecovilas propostas por ela pecam pela questão dimensional. É uma solução para pequenos núcleos, não para grandes cidades; malgrado possam ser uma semente – existem já algumas no mundo – guardam na sua concepção os limites da ideologia conservadora contra os avanços das tecnologias construtivas da verticalidade mesmo que defendam cidades compactas e densas, e ao mesmo tempo cercadas por cinturões verdes hortifrutigranjeiros.

Isso só foi possível em pequeníssimas aldeias, com um forte substrato espiritualista, como pareceu transparecer nos fluidos vocais e figurativos que precederam a palestra, onde se distribuíram folhetos do Partido Verde.

Admito o viés esotérico dessas iniciativas desde que equacionem a problemática do crescimento urbano desordenado e cruel de forma a que se desenhe – aliás, exorbitam na palavra design – uma perspectiva de solução.

O poder público desistiu de re-assentar populações em áreas de risco e resolveu relocá-las: é possível começar a desestimular a ocupação urbana em alguns pontos onde as densidades já estão exageradas e a infraestrutura viária já é insuficiente, incentivando novas edificações em zonas planejadas, previamente pautadas em um novo modelo de cidade, mais ou menos seguindo as premissas ecológicas das ecovilas de East, mas sem a ingenuidade das mesmas; quem vai construí-las são os mesmos incorporadores que escolhem pontos da cidade e concentram seus empreendimentos sem se preocupar com o depois, na mesma linha de um Luís XIV contemporâneo, pensando: depois de vendidos os condomínios que se lixem os compradores

David Byrne faz a apologia da bicicleta. Vem usando-a ao longo de anos como forma de deslocamento e “percepção dos ritmos e dinâmicas características” das metrópoles e cidades que atravessou. O livro já virou best seller.

Em determinado trecho escreve que “opções sustentáveis, transportes públicos e ciclovias não são mais alvos de piada” e mais adiante: ”…A economia afundou, os Estados Unidos podem perder seu lugar como potência número um do mundo, mas isso não significa que muitas destas cidades não possam se tornar ainda mais habitáveis.”

No fim, defende Jane Jacobs, a jornalista que se meteu a urbanista e fez sucesso propondo cidades que misturam comércio e moradias como modelo, enquanto condenava, como o próprio Byrne, as cidades americanas.

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*Lourenço Mueller é arquiteto e urbanista

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85 ANOS DA IALORIXÁ DO OPÔ AFONJÁ

02/05/2010

Foto de REJANE CARNEIRO | Agência A Tarde

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texto de zédejesusbarreto*

(especial para o Jeito Baiano)

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A bença, Mãe Stella

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Baiana de Salvador, nascida a 2 de maio de 1925, está completando 85 anos de vida, neste domingo, a cidadã Maria Stella de Azevedo Santos, enfermeira de profissão e Ialorixá por fadário, querer de Deus, escolha dos Orixás.

Trata-se de Mãe Stella, a Ialorixá Stella de Oxóssi, consagrada, iniciada há 71 anos como Odé Kayodé, nome iniciático que quer dizer ‘Caçador de Alegria’, seu Oxóssi. Ela é a sacerdotisa maior, desde 1976, do trono de Xangô do terreiro de nação iorubá – Keto/Nagô, conhecido como o Ilê Axé Opô Afonjá, a roça de São Gonçalo do Retiro, assentada em 1910 pela notável Mãe Aninha, a lendária Obá Biyi, antecessora de Mãe Senhora. A roça do Opô Afonjá comemora 100 anos de fundação, neste 2010.

Mãe Stella é a da Mãe-Preta Bahia. Antenada, moderna e ao mesmo tempo rigorosa na prática e na defesa dos fundamentos da religião, ela tem marcado seu tempo à frente da comunidade Keto Afonjá cuidando da preservação do culto e também, de forma pioneira, da transmissão por escrito do conhecimento e dos princípios aprendidos com os antepassados e transmitidos oralmente pelo mais velhos, há gerações. “O que não se registra o vento leva”, costuma repetir.

Com o propósito de disseminar ensinamentos escreveu Meu Tempo é Agora, um manual indispensável à compreensão da religião dos Orixás. Depois, lançou Oxóssi, O Caçador de Alegrias, livro dedicado ao Orixá que rege sua cabeça, com mitologias e reflexões sobre o guardião dos terreiros baianos de nação Keto. Mais recentemente, escreveu um livreto de antigos ditos, relembrando provérbios guardados na memória desde os tempos de criança: Owé – Provérbios, em português e iorubá. Por último, lançou o ilustrado Epé Laiyé –Terra Viva, uma parábola para crianças (de todas as idades) em defesa da mãe-natureza, fundamento da religião dos Orixás.

Nosso carinho, nossa homenagem a Mãe Stella de Oxóssi, em seus 85 anos de vida, desejando-lhe Axé, saúde e luz, sabedoria, sempre.

Eis alguns de seus ensinamentos, retirados de seus livros e entrevistas:

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Vivemos o tempo presente, nosso tempo é hoje, já, agora. Só pode falar “em meu tempo” alguém que não faça mais parte deste tempo: depois de ter atravessado a porteira do tempo… Quem vive é deste tempo, de agora!

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A natureza conversa conosco a todo momento, basta saber entendê-la ou dar mais um pouco de atenção a ela; Tudo o que a nossa religião professa advém da natureza.

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O Candomblé não é um produto do turismo étnico. Somos uma religião, temos nossa liturgia, uma teologia, dogmas e segredos. Temos de preservar nossos princípios e valores com todo o respeito.

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Quem for a uma festa de Orixá, num terreiro, chegue com respeito e amor. Nada é cobrado, nada se fotografa, nada é gravado. Ali é um lugar sagrado, não deve ser profanado. Os terreiros estão abertos a todos os que souberem chegar.

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Falar de Orixá é voltar no tempo, tentando decifrar o mistério do indecifrável, aquilo que apesar de ser experienciado, vivido e sentido não pode ser traduzido em uma única forma, pois tendo todas as formas, nenhuma delas o revela.

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Os orixás são concebidos como seres primordiais, expressões divinas das forças da natureza, um poder imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos através do fenômeno da incorporação.

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Dou um conselho aos visitantes e amigos do Axé: Não perguntem, observem!

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Você pode até ir à missa e ao candomblé, mas não mistura santo com orixá. O sincretismo é resquício da escravidão, o senhor queria que o negro fosse católico e ele, para agradar, dizia que era. Mas agora somos livres, não precisamos disso.

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O descendente de africano não é obrigado a ser de candomblé. Isso é ridículo. Não escolhemos o Orixá, ele é que nos escolhe.

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A fé não se impõe, nem se chega a ela pelo intelecto. Chega-se ao orixá pelo coração.

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A ‘bença’ Mãe Stella!

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*zédejesusbarreto, jornalista e escrevinhador,baiano. (30abril/2010)

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