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SALVADOR 462 ANOS – EXALTAÇÕES E CRÍTICA

29/03/2011

Retomo a postagem neste endereço WordPress pelo menos enquanto o portal de A Tarde On Line continuar under attack e sofrendo instabilidade.

Este post dedicado aos 462 anos da Cidade da Bahia, completados hoje, dia 29 de março de 2011, se divide em três partes. Na primeira, o escrivinhador e conselheiro-mor deste blog, zédejesusBarrêto, amargurado com a degradação da “Mãe Preta”, a cidade amada, recorda em prosa poética um bom momento de reencontro com ela. Na segunda parte, o poeta José Carlos Capinan satiriza Salvador quase à maneira de Gregório de Mattos, em poema dedicado ao poeta e jornalista Florisvaldo Mattos. E na terceira parte, Capinan declara seu amor à Cidade da Bahia em letra de música que Roberto Mendes transformou num afoxé, gravado pela cantora Carla Visi.

Salvador por AZIZ

PARTE I

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texto de zédejesusBarrêto

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Queria um texto bonito, afetuoso,

para homenagear a cidade amada,

a Mãe Preta

que faz 462 anos neste 29 de março/2011.

Mas descubro-me sem inspiração.

Talvez pela amargura de vê-la tão

vilipendiada, sofrida, mal-cuidada…

Então optei por um texto que escrevi na primavera de 2008,

logo que retornei de uma viagem de trabalho a África-Angola-Luanda …

com o coração apertado de saudades.

Segue:

*

Chegança

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Sexta.

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Acordo com bem-te-vis e fogo-pagôs saudando o dia

Abro as janelas

O cheiro de mato e maresia me invade

Manhã luminosa de quase primavera-verão

O reflexo do sol nas folhas largas das bananeiras provoca

um verde exuberante

Um brilho intenso se espalha pelo tempo

Aspiro luz numa aragem pura que vem do mar, adiante, tão próximo

Ligo o rádio

Caetano canta Wando, dolente e belo

À noite tem João e violão no TCA

Nos jornais, a viagem derradeira de Waldick, do brega ao paraíso

A caminho do Ilê Opô Afonjá, ouço Mateus Aleluia, sacro-afro-barroco Angola e recôncavo

Na roça do Opô Afonjá, o branco de Oxalá

Silêncio, respeito e paz

O tempo noutra dimensão

Axé! Êpa babá!

Flutuo

No caminho dos Mares

Aprecio as torres das velhas igrejas, mirantes da fé

No ponto do buzu da Jequitaia, um grupo de 20 pessoas …

Homens, mulheres, velhos, jovens, crianças

Todos de branco, da cabeça aos pés

Riam, felizes, soltos, feito anjos

No templo gótico da Senhora dos Mares

madrinha, mulher, rainha –,

elevo-me aos céus

no rastro da intensa luz que clareia a nave vazia pelos vitrais coloridos

Só eu e ela, Mãe!

Sinto-me abençoado.

Subo a Sagrada Colina para agradecer

O padre celebra, no altar florido

O branco predomina

Nos trajes, nos panos litúrgicos, na decoração

O Senhor do Bomfim reluz no dourado que a réstia de sol alumia

Mulheres negras de torços e colares de contas coloridas

quedam-se de joelhos e reverenciam com a cabeça

o poder dos mistérios da fé

Uma brisa forte vinda das lonjuras do mar-além

varre o interior do templo e refresca as almas

Mas não apaga a chama das velas, dos corações dos devotos

O Bomfim me comove

O hino cantado pelo povo me engasga, me faz chorar

Sempre, inexplicável.

Saio da igreja em estado de graça

Fora, nas escadarias, converso, beijo e ganho brindes

das velhinhas que vendem fitas-medidas abençoadas pelo ar purificado

que cobre, perfuma, purifica e passeia na Colina Sagrada.

Dá vontade de comer um filé em Juarez, no antigo Mercado do Ouro…

Ou uma moqueca de carne no Moreira, que está fazendo 70 anos…

Ou o peixe de Lula, no Mini Cacique, da rua Rui Barbosa…

Hum! Gostosuras da Mãe Preta!

O céu está limpo, com nuvens alvas

desenhos de algodão sobre o azul infinito

A visibilidade é tamanha que diviso ao longe, do outro lado do mar

da baía de Todos-os-Santos, Orixás, Voduns, Inquices e Caboclos,

a torre da igrejinha de Vera Cruz, nítida.

O cristalino azul do mar faísca em prateadas escamas

Odoyá!

Olhando pro Atlântico sem fim

penso na vó materna, Angola

Ela nos ensinou o que é dengo, saudade, molejo, mandinga.

Agora sei,

estou chegado.

Aninho-me…

É morno e macio o colo da Mãe Preta, Cidade da Bahia.

*

(zédejesusbarreto, jornalista e escrevinhador)

O texto acima é um trecho do livro ‘Cacimbo – Uma experiência em Angola’ Solisluna Editora, 2010.

O livro ‘Cacimbo’ foi lançado na Bienal Internacional do Livro, em São Paulo, no ano passado. ‘Cacimbo’ aborda, numa prosa quase versejo, as identidades e dessemelhanças entre Luanda e Salvador, cidades fêmeas, irmãs, filhas das águas atlânticas.

Angola é vó da Bahia.

A bença, minha Mãe Preta!

Obs: O livro está à venda, nas livrarias da cidade (Pérola Negra, Cultura, Saraiva, Aeroporto, LPM …

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Salvador não salva ninguém

Mas a Bahia é a Bahia!”

(Gigica do Maciel, pensador de rua, lúcido e louco, filósofo do Pelô)


***

PARTE II

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Canto quase Gregoriano

(fragmentos)

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A Florisvaldo Mattos

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JOSÉ CARLOS CAPINAN

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Então, cidade, como estás em teu moderno estado?

E como nos tem tratado teus convertidos prosélitos?

E teus alcaides, cidade

O que de novo tem praticado?

(Estás ainda tão feia quanto teus brongos, alagados)

Seriam traumas, sequelas, dos tantos que endividaram

Tuas tralhas?

Ou será tua sina divina não teres ninguém que te valha

Vestindo gravata ou saia?

Quem te governa, cidade

É a farófia revolucionária ou a direita canalha?

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II

Desde Tomé que a gente paga pra ver

A utopia prevalecer

E as Coréias proliferando

(E certamente não é que falte fé ao baiano)

Continua ele votando

(Mas não passas de um ex-voto do milagre que o demo vem praticando)

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III

(E de que valem todos os santos

Se pra baixo te ajudam os soteropolitanos?)

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IV

E então, Salvador

Mudaste a cara do Pelô?

Tiraste de lá o povo

Tocas já outro tambor?

Os que antes lá roubavam

Passaram o ponto aos doutores?

Os traficantes trocaram

De drogas e os mercadores

Vendem outras ilusões

E o amor cotado em dólares?

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VIII

Se teus esgotos esgotam

Teus cidadãos pacientes

Pelo menos uma máxima

Aos que vomitam concede

Quem maledicente fala

O repto consente

Se o meio ambiente exala

É inepta ou inapetente

A gerência da cloaca?

(Ela fede abertamente)

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XVI

Que querem teus governantes?

Negócios e, negociantes

Dinheiro, como dantes

Para o terceiro milênio

Convênio com os empreiteiros

E como dantes, dinheiro

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XX

Se aos justos difamas

E alcagüetas

Digam de mim teus ghost writers

Toda maledicência

De mim podes dizer que sou

Teu proxeneta

Já que não podes dizer que sou

Teu poeta

De mim podes dizer que sou

Teu drogado

Já que não podes dizer que sou

Teu advogado

De mim podes dizer que sou

Ressentido

Porque proíbes a esperança

Ao meu partido

Mas deixa ao menos que eu seja

O que o futuro deseja

E o que será a tua estética

Uma nova ética

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José Carlos Capinan. Poemas; antología e inéditos. Salvador: FCJA:Copene,1996.p.99-10

(Um canto quase Gregoriano foi incluído no livro Confissões de Narciso, publicado em 1995)

***

PARTE III

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SALVADOR, SALVADOR

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ROBERTO MENDES e JOSÉ CARLOS CAPINAN

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Luminosa cidade

Espelho no mar

No céu claridade

É bonita de ver

Refletida nos olhos

Do meu amor Salvador

Não deixe o meu amor morrer

Me salve da dor

Se esse amor virar saudade

Negra na cor

Cidade da fé, felicidade

Negro amor

Quero ver nos olhos dela

Tua imagem

O amor quando nos deixa

É um beco sem saída

Me salve da dor

De um beijo de despedida…

Eu vou botar meu coração na mão

Que toca o tambor do teu afoxé

Cidade da fé, felicidade

Me salve da dor

Se esse amor virar saudade…

O OLHAR CRÍTICO DE DIMITRI GANZELEVITCH

26/06/2010

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NOTA DO EDITOR – Seguem três textos em que o baiano-marroquino Dimitri Ganzelevitch lança sua visão crítica sobre a Cidade da Bahia de hoje em dia. Os artigos foram publicados originalmente em Opinião do jornal A Tarde.

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Para um Museu

de Cultura Popular

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texto de DIMITRI GANZELEVITCH*

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E nossa cultura popular? Alguém pode informar qual órgão se dedica especificamente a ela? Apostamos que não. Não existe, em todo o Estado da Bahia, um único espaço reservado à documentação, memória e resgate das expressões culturais do povo baiano. Em exposição encontrar-se-ão, talvez, umas poucas peças de caráter comercial no Instituto Mauá, muitas vezes sem especial relevância e com total deficiência de pesquisa.

A italiana arquiteta Lina Bo Bardi bem que tentou constituir, no início dos anos 60, um acervo de qualidade. A ditadura militar e o evidente desinteresse dos governantes locais por qualquer coisa que não tivesse o glamour europeu ou norte-americano relegaram o acervo aos porões do Solar do Unhão, e não se falou mais nisso.

Temos algo comparável à pernambucana Fundação Joaquim Nabuco, ao carioca Museu do Folclore Edson Carneiro, ao mineiro Museu de Artes e Ofícios? Nada! A coleção Pardal de carrancas hoje pertence a um colecionador português.

A maioria dos centros de olaria do Recôncavo e do Interior, fossilizada, está sobrevivendo no ostracismo. As rendeiras de Saubara só podem contar com uma Márcia Ganem, dentro de seu potencial de mercado. E os outros? Os que fabricam brinquedos, apetrechos de couro, cestas, mocós e balaios, montarias para jegues e cavalos, ferramentas? E as expressões e iniciativas privadas, que podemos rotular de artes espontâneas: gravadores, escultores e pintores que, sem o mínimo apoio, acabam massificando a produção para o predador mercado de turismo?

Precisamos documentar, sem mais demora, as danças, as procissões, as rezadeiras, as festas de largo, os curandeiros, os fazedores de máscaras, as lendas e crenças, o cancioneiro dos morros, das praias e da caatinga, os carnavais, as receitas tradicionais – passando por conventos, mosteiros, ocas e terreiros – as pinturas dos caminhões e carroças, o delicado e forte emaranhado dos vendedores ambulantes, tanto urbano como interiorano, os garimpeiros, pastores e boiadeiros.

Temos um material tão rico e tão ignorado! Respeitar um povo é também respeitar suas expressões. Sua essência.

Salvador, 21 de junho de 2010

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Entre cartão postal e entulho

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texto de DIMITRI GANZELEVITCH*

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Não podemos sonhar em viver numa gravura de Debret ou num cartão postal do princípio do século XX. Seria pretensão desvinculada da realidade e em absoluta contracorrente à evolução da sociedade. No entanto, os marcos da história devem permanecer evidenciados, pontuando nossa memória e permitindo referências e símbolos civilizatórios.

Já beirava os quarenta anos quando cheguei a Salvador, mas logo edifícios e monumentos formaram à minha volta uma teia de fortes laços com a cidade. Como qualquer cidadão para quem a cultura é tão importante quanto comer e respirar – faço parte de uma espécie em via de extinção –, aprendi a reconhecer a individualidade desta cidade ao passar por seus pontos mais significativos.

E a cada derrubada, sofri como a morte de algum amigo. O belo templo anglicano do Campo Grande, os solares do corredor da Vitória, os casarões da Soledade, a mansão dos Correia Ribeiro e a Vila Serena na Ladeira da Barra… Mais tarde a descaracterização da residência do arcebispo – tiraram da fachada os azulejos do século XIX para colocar cerâmica de sanitário público! –, a derrubada da elegante torre que parecia benzer a Avenida Contorno e a violenta agressão, num fim de semana, à mansão Wildberger foram alguns dos tristes momentos que marcaram estes 35 anos.

Não pretendo falar de tantas outras agressões na Ribeira, Boa Viagem ou Saúde. Os furos na canoa são inúmeros. Será que a cidade não pode evoluir sem negar seu passado?

Agora temos o absurdo da demolição da Fonte Nova, obra ímpar de Diógenes Rebouças para um evento que deverá durar o tempo de uma rosa, deixando uma montanha de entulho em algum esconderijo dos arredores da capital e novas dores de cabeça em manutenção, segurança e transportes. Na mesma vassourada, pretendem eliminar sem remorso a piscina olímpica e o Balbininho.

Será que essa obra megalomaníaca [a nova Fonte Nova] é mesmo indispensável, ou é mera atitude de pretensa modernidade? Fora as costumeiras construtoras que, melhor que alquimista medieval, sabem transformar a areia em ouro, quem irá realmente lucrar com o gasto? O contribuinte soteropolitano?

Salvador, 7 de junho de 2010

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As lindas fogueiras

de São João

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texto de DIMITRI GANZELEVITCH*

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Celebrando o solstício de verão nos países europeus, as fogueiras são muito anteriores à festa cristã de São João. Aqui, hemisfério sul, louvamos o solstício de inverno na noite mais longa do ano. A partir do dia seguinte, ela começará a encurtar, os dias a alongar.

As fogueiras têm sido, especialmente no Nordeste, elemento indispensável à festa. E como são gostosos os quitutes – canjicas, tortas e bolos, licores etc. – que cada família, mesmo a mais humilde, oferece ao visitante em torno da fogueira!

Mas vejamos o outro lado da medalha.

Pesquisadores avaliam a meros 20 milhões o número de habitantes no planeta, nos séculos X e XI. Densas florestas cobriam a quase totalidade do globo e, na Europa medieval, lobos e ursos rondavam os vilarejos. A neve, os ventos gelados e a fome, frequente até a descoberta do Novo Mundo, eram dura realidade. A partir do São João, voltava a esperança de colher frutos, semear, abrir as janelas e viver em harmonia com a natureza. Para festejar a noite de São João, era fácil encontrar galhos e troncos caídos.

Hoje temos quase 7 bilhões de habitantes devorando as reservas naturais do planeta, a maioria por necessidade de sobrevivência. Cada árvore tornou-se uma raridade digna de todos os cuidados. Então, como aceitar o massacre de resquícios de matas para alimentar milhares e milhares de fogueiras? Quem viajar pela Bahia afora, ficará assombrado ao constatar os montes de árvores, recém cortadas, comercializados na beira das estradas.

Nossa sociedade tem que se conscientizar: certas tradições, por lindas e poéticas que sejam, podem ter consequências desastrosas sobre o meio ambiente e afetar o futuro da humanidade.

E na cidade – estou pensando em particular no Centro Histórico de Salvador – as fogueiras ameaçam resultar em incêndios devastadores. Com a maioria das casas construídas em estrutura de madeira, a mais discreta faísca poderá acabar com um quarteirão inteiro em 15 minutos.

Vamos adequar estas tradições à nossa realidade?

Salvador, 20 de maio de 2010

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*Dimitri Ganzelevitch – Presidente da Associação Cultural Viva Salvador

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A CIDADE DA BAHIA E O SEU RECÔNCAVO

26/06/2010

Ilustração de GENTIL

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texto de ANTONIO RISÉRIO*

(publicado originalmente em Opinião do jornal A Tarde, em 26.6.2010)

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Me referi de passagem aqui, em artigo sobre o projeto da ponte ligando Salvador e Itaparica, a uma antevisão do sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto: a Cidade da Bahia e o Recôncavo se encaminhando para configurar a Região Metropolitana de Salvador. O governador do Estado fala hoje da ponte Salvador-Itaparica privilegiando a perspectiva da conexão com Camamu e o “baixo sul” (algum geógrafo, aliás, bem que poderia me explicar: Camamu-Tinharé, para mim, são o alto sul; o baixo sul ficaria para Alcobaça, Prado, Nova Viçosa, etc.). Mas, de modo mais imediato, temos a integração da capital e seu Recôncavo, numa área de cerca de 10 mil km², se não me falha a memória. Aliás, a BR-242, da qual a ponte deverá ser o quilômetro zero, passa por cidades que ficam no coração do Recôncavo. E, por isso, me referi a Costa Pinto – segundo Darcy Ribeiro, a maior e mais genuína vocação de sociólogo que o Brasil já conheceu.

A Cidade do Salvador e o Recôncavo nasceram juntos. Foram siameses. Ou, como diria Joyce, numa palavra-montagem do Finnegans Wake: “siamesmos”. Wanderley Pinho, em sua História Social de Salvador, enfatizava isso. Senhores de engenho tanto viviam nos canaviais quanto na cidade. Membros da Câmara de Salvador moravam em terras do Recôncavo. Escravos trocavam informações, fazendo levantes lá e cá. Terreiros de candomblé surgiram em Salvador, em Itaparica, em Santo Amaro da Purificação, em Cachoeira. Enfim, Salvador e o Recôncavo foram uma entidade integrada durante séculos. Isso só foi mudar muito recentemente. Quando as atividades de prospecção e refino do petróleo se deslocaram para cidades laterais ao miolo afrobarroco do Recôncavo. E, depois, com o Centro Industrial de Aratu e o polo petroquímico de Camaçari, que desviaram as coisas para o Recôncavo Norte, inchando Lauro de Freitas e cercanias.

Mas, antes disso, o que dizia Luiz de Aguiar Costa Pinto? No texto “Recôncavo: Laboratório de uma Experiência Humana”, nosso maior sociólogo (que tem, como seus pares, Milton Santos na geografia e Kátia Mattoso na historiografia) escreveu:

“Dois grandes fatores têm operado no sentido dessa unidade [do Recôncavo]: a Baía de Todos os Santos e a Cidade do Salvador. De fato, quer no plano estritamente geográfico, quer no mais largo sentido ecológico, o golfo tem sido o ponto focal de convergência da vida dos núcleos urbanos que em torno dele se desenvolveram; de outro lado, a Cidade do Salvador, mercado consumidor, centro político-administrativo, porto e porta de passagem dos contatos e relações com o mundo, é ponto dominante na região que margeia a baía e representa, no plano econômico, social e político, o núcleo de onde partem influências aglutinadoras sobre todo o Recôncavo, que tende cada vez mais a se transformar numa grande região metropolitana cercando a sua capital, com a qual mantém laços crescentes de comércio material, social e psicológico”.

O texto de Costa Pinto foi escrito em 1951 e reescrito em 1958. Por essa época, a conexão Salvador-Recôncavo, que vinha de inícios do século 16, começava a se desarticular. Não só pelo petróleo, é bom lembrar, como em nome de uma visão imediatista do processo baiano. Hoje, no entanto, temos a perspectiva de um reatamento. Salvador e o Recôncavo podem voltar a ser siamesmos. Aliás, acho que a nova universidade do Recôncavo poderia sair na frente dessa discussão, promovendo uma ampla releitura de escritos sobre o tema, como os de Costa Pinto e Milton Santos. Geografia e sociologia que ainda têm muito a nos ensinar.

E, aqui, volto ao tema do projeto da construção da ponte Salvador-Itaparica. A ponte pode ser a peça-chave de nossa reintegração física, econômica, social e cultural. O novo elo evolutivo que falta. Hoje, numa foto área, vemos que apenas uma parte do trabalho foi feita. A ponte do Funil faz o Recôncavo chegar a Itaparica. E a foto fica capenga. Falta fazer a outra e maior parte do trabalho. Temos Funil, temos Itaparica, mas cadê a ponte para ligar a ilha e Salvador, para completar o quadro?

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*Antonio Risério – Escritor

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NOVIDADES DA BAHIA

26/06/2010

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texto de RUY ESPINHEIRA FILHO*

(publicado originalmente em Opinião do jornal A Tarde de 17.6.2010)

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Um amigo distante pede-me que lhe conte novidades da Bahia. Pergunta-me, em especial, acerca do nosso desenvolvimento, nosso progresso. Respondo-lhe que, de fato, temos progredido bastante em certas coisas: no crime, por exemplo.

Sim, nunca se matou tanto na Bahia quanto nos últimos tempos. Toda a imprensa sai diariamente carregada de cadáveres: vítimas de assaltantes, sequestradores, traficantes, além das cada vez mais certeiras balas perdidas. Mata-se com imenso entusiasmo, nem mesmo delegado está a salvo. E ainda temos o secretário de Segurança para nos mostrar, com sociologias e estatísticas, como lemos neste jornal, que se trata de um progresso devidamente assegurado.

É o que se pode chamar de desenvolvimento sustentável – porque, quando os bandidos não matam, mata a polícia. A PM, por exemplo, tem uma atuação particularmente admirável – pois, além de matar, oculta os corpos. E mata logo em quantidade, da forma mais democrática possível, como aconteceu em Vitória da Conquista e em Pero Vaz, tendo direito ao fogo homens, mulheres, velhos, adolescentes, crianças.

Também vamos avançando muito na derrubada de árvores e aterramento de lagoas. Alguns reclamam, dizem que estamos acabando com a flora e a fauna, mas há sempre os insatisfeitos. Os animais não têm mais onde morar? Ora, eles se adaptam, já tem raposa comendo lixo e jiboia procurando apartamento para se mudar. Nosso amado prefeito, que é bom em autorizar derrubadas e aterramentos, não faz muito abandonou uma residência na região da Paralela para que barbeiros e escorpiões ficassem à vontade, já que não havia mais mato para eles.

Nosso progresso está a mil, de fazer inveja a paulistano, escrevi ao meu amigo. Lembrava-se ele de quando São Paulo não podia parar? Pois progrediu tanto que parou, agora o trânsito por lá está praticamente imobilizado. Mas São Paulo já não nos pode olhar com superioridade: nosso trânsito aqui está também chegando à total imobilidade.

Enfim, hoje faz gosto receber pedidos de notícias sobre a Bahia, só temos coisas boas para contar.

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*Ruy Espinheira Filho – Escritor, jornalista, membro da Academia de Letras da Bahia

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MILTON SANTOS – GENTE DA BAHIA

24/06/2010

Ilustração de GENTIL

Sinto-me autorizado a pleitear a possibilidade da efetivação da estátua ou um busto do nosso Milton Santos, enriquecendo a cidade e expondo um modelo de talento e superação (Jaime Sodré)

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A MILTON SANTOS POR MERECIMENTO

ou:

TIRANOS ESPINHOS

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texto de JAIME SODRÉ*

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Permitam-me apresentar o currículo:

Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP; pesquisador 1A do CNPq; visiting professor, Stanford University, 1997/98; bacharel em Direito, Universidade Federal da Bahia, 1948; doutor em Geografia, Université de Strasbourg, França, 1958; doutor honoris causa das universidades de Toulouse, Buenos Aires, Complutense de Madrid, Barcelona, Nacional de Cuyo-Barcelona, Federal da Bahia, de Sergipe, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, Estadual de Vitória da Conquista, do Ceará, Unesp e de Passo Fundo.

Prêmios:

Internacional de Geografia Vautrin Lud, 1994; USP/1999 (orientador de melhor tese em ciências humanas); Mérito Tecnológico, 1997 (Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo); Personalidade do Ano, 1997 (Instituto dos Arquitetos do Rio de Janeiro); Jabuti, 1997 (melhor livro de ciências humanas: A Natureza do Espaço, Técnica e Tempo).

Medalhas:

Mérito Universitário de La Habana, 1994; Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico, 1995; Colar do Centenário do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1997; Anchieta, da Câmara Municipal de São Paulo, 1997; Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo, 1997.

Lecionou nas universidades de Toulose, Bordeaux, Paris, Lima, Dar-es-Salaam, Columbia, Venezuela e do Rio Janeiro. Consultor da ONU, OIT, OEA e Unesco junto aos governos da Argélia e Guiné-Bissau e ao Senado da Venezuela.

Publicou mais de quarenta livros e trezentos artigos em revistas científicas em português, francês, inglês e espanhol.

Baiano de família de professores, com o avô e avó professores primários, mesmo antes da Abolição, que o ensinaram a olhar mais para frente do que para trás. Família remediada, os pais ensinaram boas maneiras, francês e álgebra. Foi aluno interno, neste ambiente começara a ensinar antes da faculdade, ingressando na Faculdade de Direito e se formando em 1948.

O fato: segundo o mesmo Milton, seu maior desejo era a Escola Politécnica em Salvador – “havia uma ideia generalizada que esta escola não tinha muito gosto de acolher negros, então fui aconselhado fortemente pela família (tinha um tio advogado) a estudar Direito, e daí mudei para a Geografia, que comecei a ensinar desde os quinze anos”. Havia uma crença na sociedade da época que na Politécnica os obstáculos eram maiores.

Escrevera no jornal A Tarde, como correspondente na região do cacau onde lecionava, por iniciativa do ministro Simões Filho que o descobriu para a imprensa. Ensinara na Universidade Católica e preparava-se para entrar na pública, onde fez concurso em 1960, após o doutorado em Geografia na França.

O pleito:

Quando saíamos do Colégio Central, em turma, na direção da Sé, era comum a brincadeira entre as estátuas do Barão do Rio Branco e Castro Alves, diziam:

Castro Alves estendia a mão em direção ao Barão pedindo uns trocados para libertar os negros, Rio Branco, com a mão no bolso, dizia “tenho mais não dou”.

Coisas da juventude.

Recentemente, a Semur [Secretaria Municipal da Reparação, de Salvador] solicitou-me uma relação de estátuas e monumentos de negros e negras em nosso espaço urbano, e inspirou-me para o que segue.

Diante do currículo exposto do professor Dr. Milton Santos, sinto-me autorizado a pleitear, quem sabe à própria Semur, a possibilidade da efetivação da estátua ou um busto do nosso Milton Santos, enriquecendo a cidade e expondo um modelo de talento e superação. Ainda de posse de uma das suas brilhantes frases, que estaria no monumento merecido:

Quem ensina, quem é professor, não tem ódio.

Em tempos de cotas, melhor local não seria adequado, senão em pleno ambiente acadêmico da Escola Politécnica, cumprindo um desejo do grande mestre, calado outrora pela mentalidade maldosa, inibidora da época. Aposso-me de uma frase, lugar comum neste gesto, na certeza do apoio de muitos, “ao mestre com carinho”.

Esta justíssima homenagem traduzirá, com certeza, a admiração do povo brasileiro aos seus filhos ilustres, registrando aqui homenagem a alguém que o mundo não se cansou de reconhecer e homenagear. Placidez, serenidade, sorriso permanente aberto, humanidade, sabedoria, sem perder a ternura diante das dificuldades, poderão inspirar o escultor a modelar, em material nobre, este nobre baiano.

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*Jaime Sodré – Professor universitário, mestre em História da Arte, doutorando em História Social

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Foto de LUIZ CARLOS SANTOS

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UMA NOVA FORMA DE OLHAR

E COMPREENDER O MUNDO

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texto de LIDICE DA MATA*

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A Câmara dos Deputados prestou homenagem ao geógrafo e professor Milton Santos, um dos mais brilhantes e respeitados intelectuais do nosso tempo, que faleceu há nove anos, deixando uma imensa lacuna, mas também nos legando uma obra incomparável que hoje é referência em todo o mundo. Não é nenhum exagero dizer que Milton Santos fundou uma nova Geografia, reescreveu os fundamentos desta disciplina, nos ensinando uma nova forma de olhar e compreender o mundo.

Negro, nascido em Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia, nunca se deixou abater pelo racismo, pelo preconceito social e nem pelas imensas dificuldades que enfrentou ao longo dos seus 75 anos de vida. Milton Santos foi um vencedor, um mensageiro da esperança, um guerreiro da palavra que, sempre com um sorriso amável, nunca parou de lutar e nos legou um arsenal de ideias sobre a problemática do mundo globalizado e as possibilidades de construirmos um futuro melhor para todos.

Nada mais apropriado para homenagear esse brasileiro de espírito crítico e inovador do que discutir a sua obra, debater e divulgar as suas ideias. Por isso, a Comissão de Educação e Cultura, da qual eu faço parte, promoveu no mês de maio, em que se comemora o Dia do Geógrafo, um seminário que contou com a participação de muitos parlamentares e representantes do meio acadêmico.

Neste momento, em que vivemos a mais grave crise do capitalismo no mundo, considero necessária e oportuna uma reflexão sobre o pensamento de Milton Santos. Ele nos inspira novos caminhos, nos aponta o rumo de uma outra globalização, em que o desenvolvimento seja voltado para o homem e não apenas para o beneficio das corporações nacionais e transnacionais.

Brasileiro, apaixonado por sua terra, Milton Santos é um pensador universal. E nesse aspecto, devemos destacar que não foi por acaso que, em 1994, ele recebeu o Prêmio Vautrim Lud, considerado o Nobel da Geografia. Sem dúvida o coroamento de uma trajetória que começou na Bahia, onde além de professor, foi jornalista e um intelectual engajado, um combatente das causas políticas e sociais.

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*Lidice da Mata – Deputada federal pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB)

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Foto de LUCIANO DA MATA | Agência A Tarde – 14.7.1997

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MILTON SANTOS, UMA BIOGRAFIA

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texto de FERNANDO CONCEIÇÃO*

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Em vida ele repudiaria o uso de seu nome para homenagens vãs. Cuidado, portanto. Em junho de 2011 completam-se 10 anos da morte do geógrafo Milton Santos, baiano para o qual setores da política e da intelligentzia local deram as costas. Tanto assim que seus restos mortais jazem em cemitério de São Paulo, cidade que o acolheu nos seus profícuos anos de projeção intelectual pós exílio forçado pela ditadura de 64.

A obra miltoniana, zelada por Marie-Helène, sua viúva, vem toda ela sendo republicada pela Editora da Universidade de São Paulo, para usufruto de quem queira. Mas afora especialistas, é certo que muitos dos que vêm se apropriando do seu nome quase nada leram dele. Ou ao menos prestaram atenção no que disse. Fariam melhor à sua memória se a difundissem apropriadamente, estimulassem a adoção de seus escritos pelas escolas possíveis. Os mesmos não se restringem à Geografia, mas expandem-se a outras áreas do conhecimento: filosofia, história, planejamento urbano, educação, economia, comunicação…

É pretensão minha entregar ao público brasileiro, daqui a um ano, a biografia de MS. Livro que narre sua trajetória, desde o nascimento em Brotas de Macaúbas. A 12 meses da efeméride, tento costurar apoios. Falta prosseguir a pesquisa necessária ao levantamento de dados, informações e depoimentos. Considerável parte desse material acha-se lá fora, por onde buscou seu sustento. Países europeus, africanos, da América Latina, Estados Unidos, Canadá e mesmo Haiti, onde se casou pela segunda vez. Também Brasil afora. O custo do trabalho não é baixo. Requer investimento que não está à mão. Mas a importância daquele intelectual exige agora dedicação quase exclusiva à tarefa. Autorizada por ele, aliás.

Cumprir a meta é o desafio. Há dificuldades naturais de percurso, objeções advindas da natureza independente do personagem a ser retratado. Daí, é de valor inestimável qualquer informação, detalhe, documento a ser oferecido para a completude da obra. Valho-me de A Tarde, no qual ele trabalhou por anos, para solicitar a colaboração de todos os que possam fazê-lo. Milton Santos, patrimônio do Brasil, é para ser rememorado sempre.

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*Fernando Conceição – Jornalista, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom/UFBA), biógrafo autorizado de MS

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Foto de MARIA ADÉLIA DE SOUZA | SescTV

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WALY, A FERA FAISCANTE

13/06/2010

Caricatura de WALY SALOMÃO criada por GENTIL

Minha admiração por Waly [Salomão] é imensa […] Daí a felicidade em ver homenagens como a biblioteca de Ribeirão Preto e o centro cultural no Rio, realização do grupo Afro-Reggae. Mas e a Bahia? Existe alguma coisa feita aqui para Waly?

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texto de ANTONIO RISÉRIO*

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Em 2004, andando por Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, sob a fuligem de canaviais queimados, vi à distância uma construção de arquitetura inconfundível. Um prédio de João Filgueiras Lima, Lelé. Curioso, fui ver o que o prédio abrigava. E tive uma surpresa que me deixou especialmente alegre. Era a Biblioteca Waly Salomão. Uma homenagem de Ribeirão Preto ao inventivo poeta-guerreiro nascido em Jequié, na Bahia. É claro que Waly mereceu a homenagem.

Meses atrás, no jornal O Globo, vi que estavam na reta final as obras do Centro Cultural Waly Salomão, agora inaugurado, na favela de Vigário Geral, no Rio. E, mais uma vez, Waly merece a homenagem. Pelo que fez e por ser quem foi.

O poeta-escritor que nos deu a prosa de Me Segura Queu Vou Dar um Troço. O poeta-letrista que nos deixou canções como Mel, Cabeleira de Berenice e Vapor Barato.

O poeta-editor que trouxe à luz a revista Navilouca e Os Últimos Dias de Paupéria, reunindo escritos de Torquato Neto.

O poeta-produtor cultural que, com Antonio Cícero, organizou os debates do Banco Nacional de Ideias, trazendo ao Brasil personalidades intelectuais como Horty, Gellner e Todorov, com o qual tive o prazer de debater em São Paulo sobre diversidade cultural.

O poeta-executivo, administrador público, que coordenou aqueles que talvez tenham sido os últimos carnavais baianos culturalmente relevantes.

O poeta-artista visual que nos brindou com a série colorida dos Babilaques.

O poeta que queria ultrapassar barras e bordas, não ser “si-mesmo”, mas tudo que fosse ou significasse um outro. O poeta que sabia e dizia que a memória não passa de uma ilha de edição.

Ao apresentar um livro seu, Armarinho de Miudezas (publicado por Myriam Fraga e Claudius Portugal, em importante coleção editorial da Fundação Casa de Jorge Amado) – cuja lembrança sempre me traz à mente o texto “Bahia Turva”, porrada na pasmaceira da província –, tentei fazer uma síntese de como eu o via, chamando-o “a fera faiscante” (àkàtà yeriyeri, nos orikis iorubanos), em referência ao orixá Xangô, dono de sua cabeça.

Curiosamente, aliás, Xangô é o orixá da retórica, do discurso, da eloquência. O senhor do axé na palavra. E, nesse sentido, Waly, que tinha uma capacidade oral extraordinária, era mesmo uma encarnação total da figura do filho de Xangô. Tinha o dom do improviso, da língua afiada, da frase desconcertante, do achado irônico-humorístico que levava todos às gargalhadas.

Naquela apresentação, entre outras coisas, escrevi: “Não há lugar aqui para o temor, a prudência, a reverência paroquial. Pensamento agudo, voz de trovão, o baianárabe Waly (de walid) é um happening ambulante. Um farsante declarado e colorido num ambiente cultural infestado de beletristas seriosos e cinzentos. Inimigo público número um do meio termo, da mesmice gustativa, Waly é uma verdadeira montanha russa de grossura e de finesse, indo das baixarias de botequim à suprema limpeza do construtivismo de Maliévitch. Sua figura é a hipérbole. O leitor de Rimbaud e Nietzsche circulando pelo morro do Estácio, da Mangueira, ou em meio aos tambores sagrados do candomblé. Curiosidade ibnkhalduniana. Estrada do excesso. Um homem livre como as formas de Arp”.

Minha admiração por Waly é imensa. Dos tempos de minha juventude, quando o conheci chez Caetano Veloso, aos dias em que trabalhamos juntos, com ele na direção do Instituto Nacional do Livro, em Brasília. Waly animava e alegrava nossas vidas na cidade de Lúcio Costa.

Daí a minha felicidade em ver obras-homenagens como a biblioteca de Ribeirão e o centro cultural no Rio, realização do grupo Afro-Reggae.

Mas e a Bahia? Existe alguma coisa feita aqui para Waly? Algum projeto, ao menos? Que eu saiba, não. Waly, na linha de um Gregório de Mattos, dizia, num texto publicado no jornal Folha de S. Paulo, que a verdadeira padroeira de Salvador era “Nossa Senhora do Empata Foda”. Tudo aqui emperra, não anda, não acontece. Acho até que ele deve estar aí em alguma fila, aguardando que antes a Bahia faça uma Casa Dorival Caymmi.

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*Antonio Risério – Escritor

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MARIA SAMPAIO – GENTE DA BAHIA

13/06/2010

MARIA SAMPAIO em sua casa, no bairro do Itaigara, em Salvador. Foto de IRACEMA CHEQUER | Agência A Tarde – 19.6.2008

Brincou de carrinho, de escrever, de picula, de desenhar e pintar, de tirar retrato. Passada dos 30, assume a fotografia profissionalmente. Aos 50 escreve”

Maria Guimarães Sampaio

Autodefinição em seu blog CONTINHOS PARA CÃO DORMIR [http://continhosparacaodormir.blogspot.com/], criado em 2008

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FICAM AS IMAGENS,

OS LIVROS, A SAUDADE…

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texto de RONALDO JACOBINA*

[publicado no jornal A Tarde do dia 3 de junho de 2010]

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Após dez anos de luta contra um câncer de mama, a fotógrafa e escritora Maria Sampaio morreu ontem [2.6.2010], aos 62 anos, no Hospital Português, onde esteve internada nos últimos dez dias. O corpo será cremado hoje [3.6.2010], no Cemitério Jardim da Saudade (Brotas).

De acordo com o único irmão, Artur Sampaio, a pedido dela, as cinzas deverão ser distribuídas entre o túmulo dos pais (o artista plástico Mirabeau Sampaio e Norma) e os rios Subaé, em Santo Amaro da Purificação (Bahia), e Sena, em Paris.

Vamos fazer a vontade dela. Era uma pessoa muito especial e valente, deixou tudo organizado antes de partir.

Considerada uma das mais importantes fotógrafas da Bahia, a partir dos anos 1970, Maria Sampaio registrou com o seu olhar sensível importantes momentos da história cultural do Estado.

Muitos desses registros permanecerão eternos, como as imagens que fez para capas de discos e livros ou para as publicações que lançou, como Recôncavo, editado pelo Desenbanco em 1985.

Dona de um rico acervo da família Velloso, de quem sempre foi muito amiga, Maria foi a autora das fotos que ilustram as capas dos discos Cores & Nomes, de Caetano Veloso (1982), e Olho d’água, de Maria Bethânia (1992).

Não sei como viverei a partir de agora sem a amizade de Maria. Ela era mais que uma irmã para nós, uma filha para minha mãe – diz, emocionada, Mabel Velloso.

Fotografia

A menina que um dia sonhou ser cantora ganhou admiração e prestígio em outras artes. Primeiro como fotógrafa, depois como escritora.

Não podia nunca ser cantora porque era muito desentonada – revelou em julho de 2008 à revista “Muito” [suplemento dominical de A Tarde].

Apesar de não ter enveredado pelo caminho da música, foi uma amante da canção popular, especialmente do fado, ritmo português que a uniu à cantora Jussara Silveira.

Há 15 dias, ela me disse que ficaria boa para irmos a Lisboa ouvir fados juntas – diz Jussara.

Como a natureza a desproveu dos atributos necessários para cantar, o talento a transformou numa artista. Visual e literária.

Maria foi uma profissional de extrema importância para a história da fotografia na Bahia – declara o colega Aristides Alves.

Foi a pedido dele que ela escreveu um texto para o livro A fotografia na Bahia, lançado em 2006.

Companheira de muitas décadas, a fotógrafa Célia Aguiar realizou vários trabalhos em parceria com Maria.

Era minha melhor amiga, minha companheira. Vivemos muitas coisas juntas: moramos juntas, viajamos juntas e fotografamos juntas. Tivemos uma vida juntas.

Para Célia, Maria sempre gostou de trabalhar coletivamente.

Ela agregava suas ideias às dos colegas de profissão, uma das pessoas mais generosas que conheci.

Literatura

Nos últimos anos, Maria passou a se dedicar cada vez mais à literatura. Desde que escreveu seu primeiro livro Estrela de Ana Brasila (2004) e, depois, Rosália Roseiral (2006), ambos pela Record, a escritora descobriu esta nova vocação. Tanto que, no ano passado, o editor Claudius Portugal, admirador e amigo de longa data, a convidou para publicar Continhos para cão dormir, pela editora P55.

Menos de um ano depois, mais um livro: Continhos para cão dormir II.

Maria era uma grande contadora de histórias e conhecia como ninguém os hábitos da sociedade baiana. Ela escrevia sobre isso com muito humor.

Foi em Maria que a dramaturga Aninha Franco se inspirou para escrever a personagem Guima do livro As Receitas de Mme Castro (Ed. P55).

Maria era uma amiga generosa, bem-humorada, ela é aquela personagem. Fiz o livro para ela e sobre ela.

E é assim que Guima (ela se chamava Maria Guimarães Sampaio) será lembrada: baiana arretada, bem-humorada, generosa e, sobretudo, amada.

MARIA SAMPAIO. Foto de IRACEMA CHEQUER | Agência A Tarde – 19.6.2008

  

NOTA DO EDITOR – Ao visitar hoje o blog de Maria Sampaio [http://continhosparacaodormir.blogspot.com/] CONTINHOS PARA CÃO DORMIR, encontrei este lindo e emocionante comentário assinado por Jorge Velloso:

 

Tucão está em novo estúdio

 

Se fossem reveladas fotografias de nossos corações hoje, com certeza sairiam sem cor, sem preto nem branco. Afinal, nossa fotógrafa, nossa companheira de farra, nossa tia, nossa amiga, nossa Maria Sampaio se despediu. Cansou, se retou (como ela mesmo gostava de falar) e foi fazer novos retratos, num estúdio lá por cima.

Se a internet do Céu estiver em boas condições, com certeza logo veremos fotos de São Jorge passeando de cavalo no blog de Maria. Com certeza veremos fotos de São Francisco brincando com Tieta e outros cachorros no Continhos para Cão Dormir. Veremos fotos de Dona Zélia com Jorge ao lado de Dona Norma e Dr. Mirabeau…

Ah! Com certeza, essa hora Maria está toda enturmada. Já deve ter arranjado um monte de empregos free lancers e está todaserelepe fazendo até foto 3×4 de Jesus Cristo, enquanto Voltaire Fraga faz de São Benedito.

Lá por cima deve estar um salseiro, porque do jeito que Maria era aqui embaixo, ela já deve ter contado um monte de casos engraçados que ela ouvia em Santo Amaro e claro, já deve ter mandado um monte de anjo chato à merda, porque muito puritanismo com ela não cola.

Só espero que ela não olhe aqui para baixo porque Maria vai seretar se vir que estamos todos tão tristes, tão saudosos e com a fotografia da saudade estampada no peito. Ela pediu que os amigos estivessem reunidos na hora que ela mudasse para o estúdio do primeiro andar, e aqui estamos, mas é nosso dever fazermos o possível para colocar pelo menos um pouco de cor no retrato deste adeus.

Uma boa saída é lembrarmos as gargalhadas de Maria. Assim, instantaneamente já vamos ser contagiados com o flash da felicidade e colocaremos um pouco de cor na foto de um dia tão triste.

Siga em paz, Tucão, e obrigado por ter dado tanto bem-querer a mim e à minha família. Ah! Quando eu te encontrar no novo estúdio vou querer que você faça fotos minhas tão bonitas como as que fez no meu casamento.

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Jorge Velloso

2 de junho de 2010

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A BAHIA NO NORDESTE

13/06/2010

Ilustração de GENTIL

No meu tempo de aluno, a Bahia e Sergipe formavam o Leste. Até início do século XX, da Bahia para cima tudo era Norte

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texto de EDIVALDO BOAVENTURA*

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Desde que fui funcionário da Sudene que sinto a dificuldade de a Bahia ser plenamente Nordeste. A intensa comunicabilidade entre os estados nordestinos não inclui a Bahia. Se os indicadores econômicos a aproximam da região, a antropologia a diferencia. Ao Recôncavo úmido e negro junta-se a região verde do cacau e do extremo sul. É um cenário bem distinto do nordestino.

A cultura negra, que tanto marca a Bahia, tem aqui a melhor expressão nacional. É a diferença que conta e sou bem mais pela diferença do que pela identidade. Temos bem mais consciência da nossa negritude do que da nordestinidade. O contingente afrodescendente, à semelhança do dendê, dá a cor da Bahia.

A bem da verdade, o soteropolitano não tem nenhum orgulho em ser nordestino. O slogan de um supermercado “orgulho de ser nordestino”, do ponto de vista do marketing, na Bahia, não funcionou.

Temos, sim, um tremendo orgulho místico de sermos baianos com o Dois de Julho, as nossas festas, a nossa culinária, o nosso passado, a nossa música. É preciso não esquecer que já fomos corte!

No meu tempo de aluno, a Bahia e Sergipe formavam o Leste. Anteriormente, até início do século XX, da Bahia para cima tudo era Norte. Gilberto Freyre e depois Celso Furtado formularam a criação social, política e econômica do Nordeste. Embora não participando inteiramente da região, as mais das vezes a usamos politicamente.

A Bahia pertencia à Sudene, mas era Nordeste? O governador ou seu representante frequentava o seu Conselho Deliberativo, uma espécie de pequeno parlamento nordestino. Houve até um superintendente da Sudene baiano, Paulo Souto. Do que eu sei, foi o único dentre muitos em toda a história desse organismo regional.

A participação da Bahia nos demais órgãos regionais tem sido muito reduzida. Quem se lembra de um baiano presidindo o Banco do Nordeste? Além de Oliveira Brito e Aleluia, qual o outro baiano que dirigiu a Chesf, no Recife? E o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas?

A Bahia não é sede de nenhum organismo regional importante. O Banco do Nordeste está suntuosamente instalado em Fortaleza. Aliás, quando da sua criação, no Congresso Nacional, poucos deputados baianos se pronunciaram a favor. Aliomar Baleeiro, por exemplo, foi contra, enquanto outros irmãos nordestinos, cearenses, pernambucanos e paraibanos lutaram pela sua institucionalização.

Em compensação, Recife funciona muito bem como capital regional. Assim procede e tira vantagens da sua liderança. A Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), a Sudene e um Tribunal Federal da 5ª Região, dentre outras instituições, localizam-se na capital pernambucana. Além do serviço que prestam, agregam fluxos de emprego e renda. Não obstante as barragens e a hidrelétrica terem sido instaladas no lado baiano do Rio São Francisco, Pernambuco com agressividade empresarial soube carrear muito antes do que nós a força e a energia da hidrelétrica. Pioneiramente, no distrito do Cabo, o governo pernambucano criou um sistema de incentivos fiscais com a energia de Paulo Afonso.

Todavia, historicamente, a Bahia sempre foi Recôncavo e Sertão. A dualidade básica da nossa história. E os sertões de Teodoro Sampaio e Euclides da Cunha nos aproximam da contingência nordestina. Os sertões nordestinos começam em Feira de Santana, que responde ao chamado de Rui Barbosa: “Princesa do Sertão”. Hoje é bem mais rainha do que princesa. À entrada dessa cidade encontra-se o “Portal do Sertão”.

Todo baiano nascido nas interioridades tem orgulho de ser sertanejo (Atenção: o vocábulo interior referente às pessoas é pejorativo, aconselho a não usá-lo). O sentimento de pertença aos sertões é forte. Com mais de 45% do extinto Polígono das Secas, a Bahia possui a maior porção do semiárido nordestino. A dinâmica das migrações sertanejas criou centros populacionais importantes como Vitória da Conquista e Juazeiro. O complexo agricultor Juazeiro-Petrolina foi o Nordeste que deu certo. A pouca consciência nordestina dos baianos é compensada pela força de recriar, interiormente, a Bahia.

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*Edivaldo Boaventura – Educador, ex-secretário de Educação e Cultura do Estado da Bahia, escritor, diretor-geral do jornal A Tarde.

O Professor Edivaldo é pai de outro baiano ilustre, o ator e cantor DANIEL BOAVENTURA

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ROBIN HOOD X A CULTURA NA BAHIA

09/06/2010

Ilustração de GENTIL

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Não existe cultura sem memória, nem consciência de nação e de cidadão sem o conhecimento histórico. (…) E nós? Como está a nossa cultura?

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texto de CONSUELO NOVAIS SAMPAIO*

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Enganam-se os que pensam não existir comprovação da existência de Robin Hood. O mito foi criado através dos séculos, baseado num personagem histórico. Não se comprovou ainda se ele viveu suas aventuras na floresta de Sherwood, condato de Nottingham, na de Wakefield, ou na de Yorkshire. Este personagem tornou-se realidade histórica a partir de pesquisas realizadas por paleontólogos, arquivistas e historiadores.

O seu nome está gravado em diversos sítios históricos, abadias e conventos, em tempos diferentes, sugerindo que outros bandoleiros (heróis?) usaram a alcunha que o identificava, não só para honrá-lo, mas também valorizarem-se. Ele foi identificado num registro cronológico que lista os “fora da lei”, desde o século XII.

O seu nome aparece, pela primeira vez, entre os anos de 1227 e 1229. No decorrer do século XIII e seguintes, foram encontrados outros Robin Hood(s). O de 1299, por exemplo, e outros que se seguiram foram descartados, por se dedicarem a “furtos comuns”, que não se ajustavam aos registros feitos nos poemas épicos, gestas e baladas medievais. O cruel xerife também foi real e perseguiu Robin Hood desesperadamente, através das florestas. Contudo não se pode ainda comprovar o seu nome.

É claro que este não é o mais antigo documento da história inglesa. Eles remontam a períodos A.C., quando da ocupação celta, viking, romana etc. A Inglaterra foi bombardeada durante a 2ª Guerra, mas preservou seus documentos e estimula as reconstruções históricas. De igual modo, parte da história humana está sendo preservada pelos mórmons no fantástico arquivo que construíram nas Montanhas Rochosas.

Não existe cultura sem memória, nem tão pouco consciência de nação e de cidadania sem o conhecimento histórico. Não é à toa que na Disneylândia, CA, antes de entrar no fantástico mundo de diversões, você deve passar por amplo salão-museu dedicado a Abrahão Lincoln, onde conhece a sua história e, em seguida, por um cine-teatro no qual você assiste a belo filme sobre a guerra de independência norte americana. É de causar inveja ver os cidadãos dos USA saírem desta sala orgulhosos, peito estufado…

Não vou me alongar com outras referências porque o leitor sabe como é bem preservada a história em outras nações, inclusive latino-americanas…

Esses comentários levam a uma pergunta: E nós? Como está sendo tratada a cultura na Bahia? O que se tem feito parece tão instável, tão circunstancial e inconsistente! Transmite a sensação de negligência e mesmo desprezo por nossos bens culturais, por nossa história. Os jornais estão fartos de registrar esta situação; os responsáveis pela manutenção de instituições culturais e ligadas à história, cansados de reclamar, pedir providências.

No dia 16 deste A Tarde publicou ampla reportagem focalizando a situação em Salvador. Documentos preciosos, do século XVII deteriorados. Não existe projeto nem sequer para digitalizá-los. Os jornais? Esfacelados. Embora não tenhamos sofrido bombardeio durante a 2ª Guerra, muitos estão pulverizados. Em boa hora, A Tarde tomou a iniciativa de digitalizar a sua coleção, remontando ao ano de 1912. O que impede o Estado de fazer o mesmo? Como entender que, para ter acesso às Mensagens governamentais do séc. XIX, tenhamos de recorrer ao acervo da Universidade de Chicago, USA.? É constrangedor, para não dizer vergonhoso.

Entende-se que esta situação resulta da parca alocação de recursos financeiros, fruto de interesses políticos imediatistas. Para trabalhar na publicação das cartas que o governador Octávio Mangabeira recebeu no exílio, e elaborar o Dicionário Biográfico-Histórico da Bahia, o Centro de Memória da Bahia (CMB) da Fundação Pedro Calmon teve de recorrer à bancada baiana na Câmara Federal. Sensíveis ao apelo para a preservação cultural e histórica da Bahia, os deputados Lidice da Mata, Jutahy Magalhães Jr., João Almeida, José Rocha, Emiliano José, Felix Mendonça e Jorge Khoury fizeram dotações individuais que, logo liberadas, permitirão a realização desses projetos.

Além do CMB, a Fundação Pedro Calmon teve outra pedra fundamental, quando criada em 1986: o Memorial dos Governadores. Até a recente reforma do Palácio Rio Branco, onde se situava, prestou grande beneficio à conscientização histórica da nossa população, através de visitantes, muitas escolas e turistas que, monitorados, recebiam explicações sobre o período republicano na Bahia, ao passarem pelas vitrines com objetos pessoais e documentos dos seus diversos governadores.

Corre o rumor que o Memorial dos Governadores será contextualizado. O que isto significa, não sei. Ouvi dizer que as vitrines desaparecerão. Prefiro não acreditar, porque nem a era da cibernética que vivemos justificaria o aniquilamento de mais um pedaço da nossa história. Ao contrário, deveria enriquecê-la. Negligência? Ignorância? Que falem os nossos “agentes culturais”.

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*Consuelo Novais Sampaio – PhD em História pela The Johns Hopkins University

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AS BAIANAS (DO ACARAJÉ) PAULISTANAS

09/06/2010

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texto de JOLIVALDO FREITAS*

(especial para o Jeito Baiano)

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Tá pensando o quê? Lá não é como aqui, não! Tem não esse negócio de “olá baiana, bote aí pra mim com bastante pimenta, com vatapá e camarão”. Tem não. O paulistano, mesmo quando ele é raciado com baiano por avó ou avô nascido tempos idos e migrado, tem a maior má vontade para com o baiano. Quem trampou por lá uns tempos viu como todos tratam todo baiano. Para eles, qualquer nordestino é “paraíba” e se o Zé Mané reage vira mais motivo de chacota e pirraça.

Lá não tem disso não, de deixar correr solto as coisas nas ruas, os camelôs e os vendedores ambulantes. Pessoal que vende cachorro-quente tem de ter licença. Oferece churrasco grego ou pastel tem de estar municiado de documentos. Quem vende bugigangas a mesma coisa, e não podia ser diferente com as baianas que fugiram da concorrência difícil de Salvador para tentar o eldorado.

Alguns itens do costume baiano, em se tratando de vendedoras de acarajé, abará, punheta, cocadas e afins (“No tabuleiro da baiana tem”) por lá são considerados fora do tom. Por mais que as autoridades sanitárias soteropolitanas tentem (e olha que elas não tentam muito não) e as entidades de classe delas, as baianas, se esforcem para dar treinamento, qualificação e discernimento (também não há um esforço tão grande assim não, é bom que se diga), quem tem a mania, hábito ou vício de degustar um bolinho de feijão fradinho passado na máquina (coisa de antigamente e na verdade não se faz mais, comprando tudo pronto na Feira de São Joaquim, já que as herdeiras das baianas famosas ficaram preguiçosas) e fritado no dendê (não mais na flor do dendê, que ficou caro e difícil de achar) e muito menos com água-de-cheiro, sabe que está correndo risco.

Basta ver que a absoluta maioria não usa luva. Boa parte de quem usa luva é para proteger a mão, pois com a luva fazem tudo que não devem, desde coçar as partes pudendas a assoar o nariz. Além de pegar qualquer coisa que caia no chão e não se troca a luva. Com isso – já que ninguém faz a pesquisa, nem a Vigilância Sanitária e muito menos outros órgãos afetos à saúde do consumidor – o que comemos quando compramos um abará, por exemplo, é a exata mistura de Vitamilho com feijão fradinho, sal, cebola, coentro e coliformes fecais.

Quem quiser que me venha dizer que está comendo o produto com todos os itens de segurança no fazer. Já visitei casa de baiana famosa onde mais de dez ajudantes faziam a massa em cima de uma pia imunda. Já vi acumulado junto ao galinheiro do quintal as folhas de bananeiras que seguram a massa do abará no cozimento. Já apreciei de perto baiana arrancando a cabeça do camarão, colocando na boca e com a mesma mão pegar outros condimentos e enrolar tudo. Mas o que invoca mesmo é a cocadinha.

Na Barra, perto da Marques de Leão, havia uma baiana que a princípio era preciso coragem de enfrentar os seus quitutes. Ela suava e passava o dedo na testa, para retirar as gotículas e limpava a mão na saia rendada, nada impecável. Suas unhas eram imensas e de vez em quando ela passava a ponta da faca por baixo para retirar o acúmulo de massa. Mesmo assim, às cinco da tarde havia uma fila imensa. O acarajé cheirava de longe e devia ser pelo “aditivo”.

Agora as baianas que foram para São Paulo vender seus bocados queixam-se que estão sendo escorraçadas das ruas pela Secretaria de Saúde e pelo rapa. Argumentam que o acarajé é patrimônio da humanidade e não apenas dos baianos e que merece respeito. Acontece que o patrimônio precisa ser respeitado por todos. Me diga aí, meu rei, quando foi que você soube ou viu aferição de qualidade de acarajé e abará na Bahia? Minha vizinha, que é viciada em acarajé, diz que não receia, pois a pimenta malagueta mata os micróbios. Tomara.

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*Jolivaldo Freitas – Jornalista e escritor

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