"Mulata Grande", 1980, óleo sobre tela de 61 x 45 cm - obra exposta no MAM de Salvador em homenagem aos 70 anos da chegada de Carybé à Bahia
70 ANOS DA CHEGADA À BAHIA
O artista enfeitiçado
pela luz e pela gente baiana
ZÉDEJESUSBARRETO*
Há 70 anos, num longínquo agosto do ano de 1938, aportou na cidade do São Salvador da Bahia um jovem artista das formas, dos traços e das letras chamado Hector Júlio Páride de Bernabó, ou simplesmente Carybé. Argentino de nascimento, italiano de herança, brasileiro de criação e baiano por escolha de vida.
À época era um moço jornalista de um diário recém inaugurado em Buenos Aires chamado ‘El Pregón’. Tinha a missão de ir desbravando a costa atlântica de sul a norte, a bordo de precários navios cargueiros de cabotagem, e, de cada parada, mandar via correio para a redação suas impressões, escritas e desenhadas, dos lugares e das gentes vistos e contactadas.
A Bahia para ele era um sonho, uma meta, desde que lera o romance Jubiabá, de Jorge Amado, lançado na primeira metade dos anos 30. Perguntava-se sempre, intrigado, se aquela gente e aqueles lugares descritos pelo romancista realmente existiam. Queria ver para crer.
Mais tarde, quando aqui chegou para viver como baiano, em 1950, Carybé escreveu sobre aquele definitivo agosto de 1938, assim:
“O gosto da Bahia, como um vinho, vinha-se sazonando dentro de mim há doze anos, desde o primeiro encontro em 1938, numa clara manhã de agosto, dia mágico em que, de um risco verde no horizonte, a Bahia surgiu no mar.
A cidade veio vindo ao meu encontro, cada vez mais luminosa, cada vez mais definida, veio vindo, veio vindo, até que atracou toda no Itanagé.
Nesse ano, fui definitivamente tarrafeado por sua luz, sua gente, seu mar e sua terra”
(Carybé)
Itanagé era o nome do navio.
Por sorte, destino ou feitiço dos deuses, orixás, caboclos e encantados que habitam a misteriosa Baía de Todos-os-Santos, a passagem pela Bahia alongou-se por seis meses.
Sem grana no bolso, logo ficou sabendo que o ‘El Pregón’ fechara as portas, falido. Para sobreviver, foi necessário descobrir o que era aquela Bahia. Trabalhou no cais, trocou prosa com os mestres de saveiros, aprendeu a tocar berimbau e a jogar capoeira com a malandragem, dormiu em armazéns das docas, frequentou os bregas do Taboão e do Maciel, disputou merenda nos tabuleiros de rua, filou muito cafezinho conversando com as putas, encantou-se com o ritmo, os costumes e as cerimônias dos terreiros de candomblé, misturou-se ao povo mais simples, pongou em bondes, conheceu as sete portas da cidade, bebeu muita cachaça de raiz com a negrada, xamegou mulheres, abaianou-se de vez e desenhou tudo o que viu.
Jamais seria o mesmo depois daquela experiência.
A luz, o traçado, o movimento, os fazeres e, sobretudo, a herança africana daquela gente da Bahia mudaram o destino de sua vida. Descobriu que ali era o lugar para se viver de arte, desenhando, pintando… com alegria. Não queria mais ser jornalista. Gostaria de retratar aquele povo, misturar-se nele.
E assim foi. Com os desenhos ‘baianos’ fez exposições, ganhou prêmios, dinheiro e caiu no mundo a percorrer toda a América do Sul, dos Andes à Amazônia, passando pelo São Francisco e a caatinga do nordeste brasileiro.
Estreitou os laços com o Brasil e a Bahia, em particular, nos 10 anos seguintes.
"Bahia", 1971, óleo sobre tela de 46 x 55 cm - obra atualmente exposta no MAM de Salvador
Quando aqui chegou em definitivo, para trabalhar para o governo da Bahia contratado pelo secretário de Educação e Cultura Anísio Teixeira, já era um pintor consagrado e conhecido nos meios artísticos do continente.
Mas foi na Bahia, a partir dos anos 50, que ele renasceu, floriu.
Jorge Amado escreveu:
…’Carybé plantou raízes tão fundas na terra baiana como nenhum outro cidadão aqui nascido e amamentado. Bebeu avidamente essa verdade e esse mistério, fez da Bahia carne de sua carne, sangue de seu sangue, porque a recriou a cada dia com maior conhecimento e amor incomparável’.
Carybé participou – ao lado de Jorge Amado, Mário Cravo, Carlos Bastos, Jenner Augusto, Floriano Teixeira e outros tantos artistas do traço, da goiva, do pincel, das mãos, das letras, da música, das artes cênicas, interagindo com eles – de um período de renascença das artes e da cultura baianas: as décadas de 50 e 60. Foi um ator, autor, um motivador, um transformador.
Salvador, nesse tempo, transbordava novas idéias. A Universidade recém-criada abrigava talentos e mestres vindos de vários pontos do planeta, atraídos pela musicalidade, pela dança, pela religiosidade, pelo fazer cultural e o modo de viver do povo. A capoeira deixava os guetos transformando-se numa manifestação de arte. Os candomblés passaram a ser motivo de estudo antropológico e as grandes senhoras da sabedoria dos terreiros baianos começaram a ser respeitadas e ouvidas.
A festividade, a mistura de raças, credos e cores de nossa gente faziam da Bahia, enfim, um lugar diferente, afirmativo da diversidade humana.
Essa Salvador do início dos anos 50 possuía bondes elétricos em trilhos e menos de 500 mil habitantes; os saveiros com seus panos brancos estendidos em altos mastros cortavam as águas azuis da baía, abarrotados de mercadorias ligando a capital aos recantos do Recôncavo; os trens saíam de 15 em 15 minutos da estação da Calçada com destino ao interior e a outros estados vizinhos; os pescadores ainda cantavam puxando a rede do xaréu nas praias; os vales eram mata virgem e os bairros cheios de árvores frutíferas; a grande feira de Água de Meninos, o principal centro de abastecimento da cidade e o Pelourinho era o umbigo da noite com suas prostitutas, boêmios e histórias de encantamento sem fim.
Essa era a Bahia de então. A mesma já cantada por Caymmi, descrita por Jorge Amado, reportada por Odorico Tavares, fotografada por Pierre Verger e desenhada, pintada, esculpida, retratada por Carybé.
O artista Mirabeau Sampaio, contemporâneo, escreveu:
‘Nasci e me criei aqui em Salvador e posso lhe afirmar: na Bahia não existia um negro, era coisa que ninguém tinha visto aqui, até a chegada de Carybé’
Exagero? Então leiam um trecho de um artigo do jornalista e contista Rubem Braga, escrito na década de 50:
‘Carybé não se inspira na Bahia: Parece que é a Bahia que se inspira em Carybé. De repente, a gente vê um negro de camiseta branca ou uma baiana de saia rodada, ou um sobradinho de telhado escuro ‘pintando’ os desenhos de Carybé’
A obra de artistas como Jorge Amado, Caymmi, Mário Cravo, Verger e Carybé extrapola suas artes. Seus legados são, de fato, uma contribuição histórica, um registro antropológico de um tempo, de uma época única, de um povo e de uma cultura diferenciados.
Pode-se até dizer que essa tal ‘baianidade’, esse jeito de viver e ver o mundo não mais existe, que essa Bahia já não mais existe. Claro, a vida é um pulsar constante e tudo se transforma, perenemente. Mas o encantamento, a sofrência e a poesia desse tempo é história. E História não se apaga assim da memória de um povo.
Uma mostra dessa Bahia antiga e mágica, tão viva ainda nalguns recantos da cidade, como nos terreiros de santo, em tradições e festas como a Lavagem do Bonfim e a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, em Cachoeira…
Carybé posa com uma de suas obras em foto do repórter Carlos Santana / Agência A Tarde, 14/05/1997
Pois quem quiser conhecer um pouco, um capítulo da história desse povo de tantas misturas e magias, que vá, logo, ao MAM-Museu de Arte Moderna da Bahia, no Unhão, avenida Contorno, em Salvador. Lá estão expostos mais de 250 dos cerca de cinco mil trabalhos do genial pintor, desenhista, escultor, muralista, escritor, e arteiro baiano Carybé. O gradil da entrada/descida para o Unhão é arte dele. Aprecie.
A exposição é uma comemoração dos 70 anos de sua chegada à Bahia pela primeira vez, quando foi definitivamente tarrafeado pela luminosidade desta terra abençoada.
Não carece de pressa diante da delicadeza e parcimônia dos traços, da luz, o vazio, as formas, as cores, a grandeza da arte do mestre de riso largo, olhar sedutor, camisa de botões aberta, chinelos e alma de criança. Um dos maiores artistas do século XX.
A bênção Obá Onã Xocum, servo de Xangô.
A bênção Iji Apogã, de Omolu
A bênção filho de Oxóssi, do Ilê Axé Opô Afonjá
A bênção Carybé!
(Carybé nasceu em Lanus, subúrbio de Buenos Aires, em 7 de fevereiro de 1911, mas só foi registrado no dia 9. Morreu em 1º de outubro de 1977, no terreiro do Opô Afonjá, em Salvador)
*zedejesusBarreto, jornalista, é baiano de Salvador. Escreveu e editou os textos do livro Carybé e Verger – Gente da Bahia, selo Entre Amigos da Fundação Pierre Verger, editado pela Solisluna Design Editora. É também autor, com o jornalista Otto Freitas, do livro/perfil Carybé, Um capeta cheio de arte, da coleção Gente da Bahia, editado pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.