Posts Tagged ‘Jorge Amado’

JORGE AMADO E AS BALEIAS DO RIO VERMELHO

09/04/2010

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texto de JOLIVALDO FREITAS*

(especial para o Jeito Baiano)

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Um dia, não lembro bem, sei que nos anos 1980, fui até a casa de Jorge Amado, no Rio Vermelho, agradecer as boas palavras que ele tinha mandado à guisa de prefácio para um dos meus livros. Ele estava escrevendo sua Navegação de Cabotagem e deu uma parada para me atender, atencioso que era com todo mundo do mundo inteiro.

Para puxar conversa, pois não iria perder a chance de conversar com um gênio da literatura da Língua Portuguesa, agradeci, fiz todos os salamaleques possíveis – puxando o saco mesmo – e ele me ofereceu um pouco do suco que estava tomando, acho que era de manga, ou seria pitanga?

Entabulei logo uma conversa mole, mesmo sabendo que estava ocupando seu tempo, perguntando se ele tinha visto uma baleia cachalote que passara semanas antes pelo Rio Vermelho. Explicou que estava viajando, e que sentiu muito ao ver pela televisão a bicha espirrando água para todos os lados e pulando, batendo a cauda, com uma alegria que somente as baleias, os golfinhos e os botos possuem na fauna marítima.

Então o que era para ser uma conversa para boi dormir se transformou numa história bastante interessante, ele animado me dizendo das suas aventuras no bairro do Rio Vermelho de antigamente, quando ao lado do poeta e artista plástico Licídio Lopes parava para apreciar a passagem das baleias em certas datas do ano.

Ele me disse que elas vinham aos montes e vez em quando alguma se perdia e encalhava e a depender do dia ou era ajudada a voltar para o mar ou virava bife. Deu uma risada de ombros, ao tempo que ilustrava a situação, mostrando que havia, sim, pesca da baleia no Rio Vermelho, embora os verdadeiros baleeiros especialistas estivessem mesmo na Z1: colônia de pesca lá das bandas de Itapuã.

Perguntei se ele tinha comido carne de baleia e disse que certa vez provara, mas não lembrava mais do gosto. Mas, garantiu que Dorival Caymmi comia e se regalava, dando um sorriso de canto de boca que não sei se era falando a verdade ou sacaneando o compadre, coisa que ele gostava de fazer juntamente com Carybé e Calazans Neto.

Antes de ir embora perguntei o porquê de as baleias terem corrido do mar aberto do Rio Vermelho. Ele explicou que devia ser por causa da diminuição no número de espécimes e que baleia por não ser burra guarda na memória os locais onde o perigo é maior e voltou a gargalhar. Acusou, entretanto, a poluição como um dos fatores do afastamento para alto mar dos cetáceos.

Por último relembrou que às vezes era tanta baleia que parecia até procissão marítima. E vaticinou que um dia elas ainda voltariam a frequentar o Rio Vermelho. Ele sabia o que estava falando. Não é que elas começaram a aparecer mesmo que timidamente.

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*Jolivaldo Freitas – Jornalista, escritor, editor do blog Joli: http://www.jolivaldo.blogspot.com/

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ILDÁSIO TAVARES – GENTE DA BAHIA

07/02/2010

ILDÁSIO TAVARES em seu reduto de produção e criação durante entrevista para a série MEMÓRIA DA BAHIA, do jornal A Tarde. Foto de MARCO AURÉLIO MARTINS | Agência A Tarde - 16.6.2009

AS SETENTA VIDAS DE UM OBÁ-POETA

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texto de JORGE PORTUGAL*

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Quando ele nasceu, um anjo torto, barroco e baiano, olhou-o com um sorriso fescenino e decretou em sentença: “vai, poeta, ser Ildásio na vida!”

Daí em diante, ele só se multiplicou por inúmeras faces e, sozinho, poderia muito bem ter povoado todos os espaços e recantos da literatura.

Existe o Ildásio poeta, o Ildásio professor, o Ildásio erudito, capaz de discorrer com elegância e conhecimento profundo sobre dez dos dez mais complexos assuntos que pautam nossa cultura; temos também o Ildásio boêmio e amante da sedutora paisagem baiana, sobretudo se encarnada no sexo feminino, independente de etnia ou origem social, mas importando que possua as curvas estonteantes da Avenida Contorno.

Esse é certamente o “Dadá Tavares”, cantado por Antônio Carlos e Jocáfi que “entre noites, mulheres e badalos, dava aula de inglês nos intervalos pra que sua família não lhe deserdasse”.

Esse também pode ser chamado Ildásio Taveira, personagem memorável de Jorge Amado no seminal A Tenda dos Milagres, que nos comunica uma Bahia negra, negro-mestiça, civilizada pela sabedoria africana, na sua capacidade de criar e resistir.

Aí se desvela o Ildásio do Candomblé, o Obá de Xangô e o filho de Omolu/Jacum, o exímio capoeirista Lacrau de outros tempos, e o sábio de hoje que continua lutando para esquivar-se de adversidades, aplicando aús e meias-luas na vida.

E há um impagável Ildásio epigramista, demolidor implacável de hipocrisias e reputações literárias que não resistiriam ao sopro da mais leve brisa. Espécie de Gregório de Mattos redivivo, encarna esse espírito barroco que atravessa a Bahia, como seu arquétipo cultural, e tempera, com veneno e arte, a expressão da inteligência aguda e do riso triunfal.

O espaço deste artigo já está acabando e ainda sobra tanto Ildásio que nem suas setenta vidas seriam capazes de abarcar.

De “restos”, querido poeta, o coração daquele menino de 12 anos, que se fez encantado por sua poesia, ainda guarda o verso-senha da sua inspiradora existência: “há um resto de ontem na calçada/ que foi dia de festa e fantasia/ há um resto de mim em toda parte/ que nunca pude ser inteiramente”.

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*Jorge Portugal – Educador, poeta, compositor, apresentador do programa TÔ SABENDO!, da TV Brasil

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PRA SALVAR YEMANJÁ – BAIANICES

01/02/2010

Casa de Yemanjá, no Rio Vermelho, Salvador (BA). Foto de IRACEMA CHEQUER | Agência A Tarde - 1.2.2010. Seleção de fotos deste post por CRISTIANO PARAGUASSU

É dois de fevereiro

Dia de festa no mar

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texto de zedejesusbarreto

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Escreveu, musicou e cantou o mestre Dorival Caymmi, amado e amante dos mistérios femininos do mar da Bahia (os franceses chamam de La Mer, já que o mar é fêmea):
(Vídeo do YouTube produzido especialmente para o blog SALVADOR NA SOLA DO PÉhttp://salvadornasoladope.blogspot.com/)

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Dia Dois

de Fevereiro

Dia de festa no mar

Eu quero ser o primeiro

pra salvar Yemanjá

Escrevi um bilhete pra ela

pedindo pra ela me ajudá

Ela então me respondeu

Que eu tivesse paciência de esperar

O presente que eu mandei pra ela

De cravos e rosas, vingou.

Chegou! Chegou! Chegou!

Afinal que o dia dela chegou.

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Presentes para Yemanjá depositados no Barracão ao lado da Casa do Peso, no Rio Vermelho. Foto de FERNANDO AMORIM | Agência A Tarde - 2.2.2009

Contam os mais velhos que a festa do dia 2 de fevereiro, nos mares da Bahia, teve origem na segunda década do século passado, após um período de pouco peixe nas águas e nas linhas e redes de pesca dos homens do mar. Daí, pescadores da Colônia do Rio Vermelho, ligados ao culto afrobaiano fizeram promessas à Deusa das Águas, bateram atabaques, dançaram, cantaram e arriaram presentes no mar pedindo proteção e fartura. Dali em diante, a pesca foi farta e a festa virou tradição, com o povo em romaria fazendo seus pedidos, agradecendo e deixando seus presentes nos balaios para que os pescadores levassem ao alto mar, em homenagem a ela, Iemanjá, Janaína, Princesa de Aiocá… A Rainha do Mar de tantos nomes cultuada em várias partes do planeta desde as antiguidades.

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Minha Sereia, Rainha do Mar

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Pierre Fatumbi Verger, em seu livro ‘Orixás’, necessária abordagem sobre a religiosidade afrobaiana, ensina que o nome Yemanjá deriva de Yèyé omo ejá (‘Mãe cujos filhos são peixes’), orixá ou divindade dos Egbá, uma nação de língua iorubá que viveu na região entre Ifé e Ibadan onde fica o rio Yemoja – África sub-saariana, atual Nigéria.

Mas, no início do século XIX, as constantes guerras entre nações iorubás levaram os Egbá a emigrar na direção oeste, para Abeokutá, cidade onde há um templo dedicado a Iemanjá, divindade cultuada no Brasil e em Cuba.

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Seu axé é assentado sobre pedras marinhas e conchas, guardadas numa porcelana azul. O sábado é o dia da semana que lhe é consagrado, juntamente com outras divindades femininas. Seus adeptos usam colares de contas de vidro transparentes e vestem-se, de preferência, de azul claro’.

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Manifestada em suas iaôs, Iemanjá dança imitando as ondas do mar e é saudada aos gritos de ‘Odò Iyá!’. No Brasil é sincretizada com Nossa Senhora da Imaculada Conceição.

Integrantes do afoxé Filhos de Gandhy levam os presentes para os barcos. Foto de FERNANDO AMORIM | Agência A Tarde - 2.2.2009

Festa de Pescador

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Sobre a festa popular do Rio Vermelho, Pierre Verger a fotografou nos anos 1950 e também a descreveu, assim:

A festa do dia 2 de fevereiro é uma das mais populares do ano, atraindo à praia do Rio Vermelho uma multidão imensa de fiéis e de admiradores da Mãe das Águas. Iemanjá é frequentemente representada sob a forma latinizada de uma sereia, com longos cabelos soltos ao vento. Chamam-na, também, Dona Janaína ou, mesmo, Princesa ou Rainha do Mar.

Neste dia, longas filas se formam diante da porta da pequena casa construída sobre um promontório, dominando a praia, no local onde, nos outros dias do ano, os pescadores vêm pesar os peixes apanhados durante o dia. Uma cesta imensa (balaio) foi instalada de manhã, logo cedo, e começa então um longo desfile de pessoas de todas as origens e de todos os meios socais, trazendo ramos de flores frescas ou artificiais, pratos de comida feitas com capricho, frascos de perfumes, sabonetes embrulhados em papel transparente, bonecas, cortes de tecidos e outros presentes agradáveis a uma mulher bonita e vaidosa. Cartas e súplicas não faltam, nem presentes em dinheiro, assim como colares e pulseiras. Tudo é arrumado dentro da cesta, até que, no final da tarde, ela está totalmente cheia com as oferendas, as flores colocadas por cima.

O presente para Iemanjá, transformado numa imensa corbelha florida, é retirado com esforço da pequena casa e levado, em alegre procissão, até a praia, onde é colocado num saveiro. O entusiasmo da multidão chega ao seu máximo; não se escutam senão gritos alegres, saudações a Iemanjá e votos de prosperidade futura. Uma parte da assistência embarca a bordo dos saveiros, barcos e lanchas a motor. A flotilha dirige-se para o alto-mar, onde as cestas são depositadas sobre as ondas.

Segundo a tradição, para que as oferendas sejam aceitas, elas devem mergulhar até o fundo, sinal de aprovação de Iemanjá. Se elas boiarem e forem devolvidas à praia, é sinal de recusa, para grande tristeza e decepção dos admiradores da divindade’

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A tradição popular baiana, com todas as manifestações de fé, continuam preservadas, a despeito dos interesses turísticos e das velozes transformações desses tempos digitais. Muitos terreiros de candomblé fazem alvorada de fogos, cumprem rituais, arriam oferendas para Oxum nas águas doces e, depois, os adeptos vão às praias em romaria para entregar seus presentes e pedidos a entidade que habita as águas do mar.

Na colônia de pescadores do Rio Vermelho os atabaques batem desde o amanhecer. São entoados cantos em iorubá, banto e ijexá, os iniciados dançam e alguns incorporam o Orixá. Nesse dia de verão, Salvador praticamente para. A multidão, cada ano maior, faz festança nas ruas do bairro repletas de barracas, varando a madrugada.

É festa de rua da Bahia.

Foto de FERNANDO AMORIM | Agência A Tarde - 2.2.2009

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Re-ouvindo Caymmi:

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Minha sereia, rainha do Mar

O canto dela faz admirar

Minha sereia é moça bonita

Nas ondas do mar aonde ela habita

(Oh! Tem dó de ver o meu penar)

– Minha Sereia!

– Rainha do Mar …

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Os nomes de Iemanjá

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No extraordinário romance ‘Mar Morto’, Jorge Amado assim escreveu:

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Iemanjá, que é dona do cais, dos saveiros, da vida deles todos, tem cinco nomes.

Cinco nomes doces que todo mundo sabe. Ela se chama Iemanjá, sempre foi chamada assim e esse é seu verdadeiro nome, de dona das águas, de senhora dos oceanos.

No entanto os canoeiros amam chamá-la de Dona Janaína, e os pretos, que são seus filhos mais diletos, que dançam para ela e mais que todos a temem, a chamam de Inaê, com devoção, ou fazem suas súplicas à Princesa de Aiocá, rainha dessas terras misteriosas que se escondem na linha azul que as separa de outras terras.

Porém, as mulheres do cais, que são simples e valentes… as mulheres da vida, as mulheres casadas, as moças que esperam noivos, a tratam de Dona Maria, que Maria é um nome bonito, é mesmo o mais bonito de todos, o mais venerado, e assim dão a Iemanjá como um presente, como se lhe levassem uma caixa de sabonetes à sua pedra no Dique.

Ela é sereia, é a mãe-d’água, a dona do mar, Iemanjá, Dona Janaína, Dona Maria, Inaê, Princesa de Aiocá. Ela domina esses mares, ela adora a lua, que vem ver nas noites sem nuvens, ela ama as músicas dos negros’…

Foto de FERNANDO AMORIM | Agência A Tarde - 2.2.2009

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Caminhos do Mar

(Essa canção que segue foi tema da novela ‘Porto dos Milagres’, da Tv Globo, inspirada em Mar Morto, romance de Jorge Amado; é uma composição de Dorival Caymmi, de seu filho Danilo e de Dudu Falcão):

Rainha do Mar

Yemanjá, Odoiá,

Odoiá, rainha do mar

Iemanjá, Odoiá

Odoiá, rainha do mar

O canto vinha de longe

De lá do meio do mar

Não era canto de gente

Bonito de admirar

O corpo todo estremece

Muda a cor do céu, do luar

Um dia ela ainda aparece

É a rainha do mar

Iemanjá, odoiá, odoiá, rainha do mar

Iemanjá, odioá, odoiá, rainha do mar

Quem ouve desde menino

Aprende a acreditar

Que o vento sopra o destino

Pelos caminhos do mar

O pescador que conhece

As histórias do lugar

Morre de medo e vontade

De encontrar Iemanjá

Foto de FERNANDO AMORIM | Agência A Tarde - 2.2.2009

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zedejesusbarreto, jornalista e escrevinhador (autor dos textos dos livros ‘Carybé & Verger – Gente da Bahia’ e do seguinte ‘Carybé, Verger & Caymmi – Mar da Bahia’, da trilogia ‘Entre Amigos’, criada pela Fundação Pierre Varger e pela Solisluna Design Editora, lançados em 2008 e 2009.)

30jan/2010.

A VIDA BAIANA COMO ELA É

28/10/2009

O título acima é uma paródia do “A vida como ela é”, de Nelson Rodrigues, e me veio à mente quando tive a ideia de reproduzir aqui no blog uma notícia que me impressionou, lida na página de polícia do jornal A Tarde de hoje. “PM assassinado com 3 tiros na cabeça” é a manchete da página, aparentemente corriqueira. Mas na altura do quarto parágrafo do bom texto do repórter Samuel Lima, me senti repentinamente transportado para o clima de um romance de Jorge Amado. Confira.

Mercado de      São Miguel 100707HA110
O Mercado de São Miguel, na Baixa dos Sapateiros, foi o cenário do crime. O soldado PM Josué dos Prazeres estava de folga cochilando em um destes barzinhos quando dois homens desceram de uma moto e o executaram. Foto: HAROLDO ABRANTES | Agência A Tarde

PM É ASSASSINADO

COM 3 TIROS NA CABEÇA

 

por SAMUEL LIMA

 

Apesar das advertências da esposa, o soldado da Polícia Militar Josué Elias Pedro Vilas Boas dos Prazeres, 45 anos, continuava a frequentar os bares do Mercado de São Miguel, na Baixa dos Sapateiros. Tanta preocupação da mulher fez sentido por volta das 15h30 de ontem, quando o soldado Prazeres foi executado com três tiros na nuca enquanto cochilava em frente à Cantina do Joaquim.

De folga, o militar – lotado no 18º Batalhão da PM (Centro Histórico) – estava no mercado desde a manhã, bebendo cerveja na companhia de um amigo. Ainda não há informações precisas quanto à autoria do homicídio, mas, conforme Josilene dos Santos, 35, mulher da vítima, populares disseram que dois homens teriam se aproximado de Prazeres e efetuado os disparos. Adormecido em uma cadeira, de costas para a rua, o soldado não percebeu a aproximação dos criminosos e não teve chances de defesa. Ele ainda foi levado por colegas ao Hospital Geral do Estado, mas já chegou morto à unidade.

Ele sempre ficava sentado assim, exposto. Não tinha jeito”, lamentou Josilene. Já a PM, em nota, informou que Prazeres foi morto com dois tiros, sendo que um o atingiu na cabeça. Ainda de acordo com o comunicado, os dois assassinos teriam chegado ao local em uma motocicleta.

Decoradora de bufês, ela contou que o marido passou a frequentar o Mercado de São Miguel há três anos, depois que iniciou um relacionamento amoroso com Gilneia de Jesus, 23. “Ele montou uma barraquinha para que ela ficasse tomando conta. Era por isso que ele ia todo dia lá”, reclamou Josilene.

O crime está sob investigação da Delegacia de Homicídios (DH). Francineide Moura, delegada titular da unidade, relatou que a identidade de suspeitos do assassinato já foi levantada. Entre as hipóteses apuradas está a versão de que um traficante de drogas que age no Centro de Salvador teria ordenado o delito.

Lembro que ele deu entrevista a um canal de televisão no dia do enterro de um colega, na semana passada. Talvez os bandidos tenham visto”, observou Josilene. Prazeres compareceu ao funeral do soldado Carlos Bonfim Galo, no Cemitério Campo Santo, no último dia 23. Na véspera, Galo foi morto a tiros dentro da mercearia que montara, na Fazenda Grande do Retiro, ao reagir a um assalto.

Prazeres é o 13º policial militar vítima de morte violenta na Bahia, em 2009. No ano passado, o número de perdas chegou a 34 – o que levou a Secretaria da Segurança Pública a criar um grupo especial de investigação contra homicídios praticados contra PMs. Prazeres estava na corporação há 21 anos. Ele deixou quatro filhos, todos frutos de um relacionamento anterior – o mais velho, de 23 anos, é guarda municipal.

O soldado morava nas imediações da Avenida San Martin, de onde saiu ontem, por volta de 7 horas, direto para a Baixa dos Sapateiros, segundo contou Josilene. Prazeres voltaria a ficar de plantão na noite de hoje. “A culpada é a amante dele, que todo dia chamava ele para beber”, bradou a decoradora.

Como também estava na cena do crime, Gilneia foi intimada a depor na DH na noite de ontem. Até o fechamento desta edição, ainda não havia confirmação de conclusão da oitiva. Policiais militares de diversas unidades realizaram incursões pelo Centro, mas não foram efetuadas prisões.

NOTA DO EDITOR – O repórter Samuel Lima disse hoje que o depoimento de Gilneia não acrescentou nenhuma informação nova, mas ela negou que chamasse Josué todo dia para beber. Gilneia contou que, pelo contrário, dizia ao PM para não ir ao Mercado de São Miguel porque era perigoso para ele.

INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA BAHIA-4

04/07/2009
No desfile do Dois de Julho, a Cabocla sempre porta a bandeira da Bahia, enquanto o Caboclo leva a bandeira do Brasil. Foto: Lúcio Távora | Agência  A Tarde 2.7.2009

Durante o desfile do Dois de Julho, em Salvador, a Cabocla sempre carrega a bandeira da Bahia, enquanto o Caboclo, em outro carro, leva a bandeira do Brasil. Foto: Lúcio Távora | Agência A Tarde 2.7.2009

 por Jary Cardoso

     O Brasil precisa conhecer e cultuar a história de como se desenvolveu o movimento pela independência do país na Bahia, culminando no 2 de julho de 1823. Os baianos revivem todo ano com alegria e emoção o orgulho pelo heroísmo e bravura de seus antepassados, sentimentos que têm de ser compartilhados pelos demais brasileiros. É o que recomendo como brasileiro nascido em São Paulo e hoje morando em Salvador.

     Este ano tive o privilégio de aprender um pouco mais sobre os primórdios desse movimento e conhecer seu caráter libertário. Foi quando atendi ao convite de Jorge Portugal, poeta e educador, para ir à sua cidade natal, Santo Amaro da Purificação, no dia 14 de junho. Jorge disse que iria receber a Comenda Marquês de Abrantes na Câmara de Vereadores e gostaria da minha presença.

     Ao chegar a Santo Amaro em meu fusquinha, encontrei a cidade em festa cívica, com faixas saudando sua data magna. Como explicou Jorge Portugal, o movimento pela Independência da Bahia – que na verdade resultou na consolidação da independência de todo o País – começou a se esboçar justamente na Câmara de Santo Amaro, em 14 de junho de 1822.

     Cito o historiador Luís Henrique Dias Tavares, mestre de Jorge Portugal, em seu livro História da Bahia, anos 1821-1822:

     A Bahia aderira às cortes de Lisboa, elegera deputados para elaborar a futura Constituição do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve e desconhecera a regência do príncipe dom Pedro, instituída com o regresso do rei dom João VI para Lisboa (…)

     (…) a Junta Provisória de Governo da Província da Bahia atuava cada vez mais submissa a Lisboa (…)

     (…) A política das Cortes Gerais para o Brasil definiu-se no segundo semestre de 1821, dirigida a neutralizar qualquer mínima possibilidade de existência de um governo executivo central em alguma província brasileira.

     (…) [em fevereiro de 1822] chegou à cidade do Salvador a Carta Régia nomeando Governador das Armas o brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo, em substituição ao brasileiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães. Logo se instalou uma situação de conflito.

     (…) Em resposta, oficiais brasileiros (…) declararam que era ilegal aceitar um decreto de Lisboa sem a aprovação da Câmara. Não queriam Madeira de Melo no Governo das Armas e para tanto orientaram a resistência que envolveu militares e civis brasileiros contra a sua nomeação.

     (…) O dia 19 de fevereiro amanheceu com a ofensiva das tropas portuguesas.

     (…) Concluída a ocupação militar da cidade do Salvador, Madeira de Melo adotou uma linha política que visava (…) obter o apoio local para manter a Bahia unida a Portugal.

     (…) Número apreciável de famílias abandonou a cidade do Salvador e se dirigiu para Santo Amaro, São Francisco do Conde, Cachoeira e Maragogipe. Em abril já existiam várias conspirações contra o governo militar que o brigadeiro Madeira de Melo estabelecera.

     (…) A definição dos baianos ocorreu entre maio e junho de 1822 (…)

     [Agora se aproxima o momento de Santo Amaro]

     Os partidários do reconhecimento da autoridade do príncipe tentaram uma decisão na Câmara da cidade do Salvador. Marcada para se reunir no dia 12 de junho, as tropas portuguesas bloquearam as ruas (…) A reunião foi proibida.

     Dois dias depois (14 de junho) reuniu-se a Câmara de Santo Amaro (…) A Câmara decidiu: “Que haja no Brazil hum centro único de Poder Executivo; que este Poder seja exercido por sua Alteza Real o Príncipe Regente”.

     A partir dessa decisão é possível encontrar uma sequência de preparativos na Bahia para o reconhecimento da autoridade do príncipe dom Pedro (…)

     O episódio seguinte ocorreu pouco depois, no dia 25 de junho, que se tornou a data magna de Cachoeira, localidade vizinha de Santo Amaro. Lá também a Câmara reconheceu a regência de D. Pedro, e houve ainda luta contra portugueses e tiros, desencadeando uma série de episódios que ainda preciso conhecer melhor.

     Voltando ao 14 de junho de 2009 em Santo Amaro. Antes de começar a solenidade na Câmara, que teve a presença do ministro da Cultura, Juca Ferreira, procurei me informar com Jorge Portugal sobre os acontecimentos de 187 anos atrás. E ele me levou a recuar um pouco mais na História.

     Jorge Portugal disse que as lutas pela independência da Bahia foram precedidas, em 1798, por um movimento libertário em Salvador, a chamada “Revolução dos Alfaiates” ou “Revolta dos Búzios”, inspirado na Revolução Francesa e nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Seus ideais eram muito mais avançados que a Inconfidência Mineira.

     Luís Henrique Dias Tavares escreveu assim sobre a “sedição de 1798”:

      (Este importante movimento foi) amplo e singular, por seu ideário, pelo largo circuito social dos que dele participaram ou nele foram envolvidos, proprietários, oficiais e soldados do exército colonial português na Bahia, intelectuais, artesãos (alfaiates livres e escravos, cabeleireiro, ourives, pedreiro, carapina, ferreiro, bordador) e escravos, pela influência que recebeu das ideias humanistas de igualdade de todos os seres humanos e do exemplo da Revolução Francesa de 1789-1793, que degolara um rei e uma rainha, proclamara o regime republicano e extinguira o trabalho escravo.

     (Boletins sediciosos) foram colados na fachada de casas (…) Eles repetem itens e frases referentes ao soldo dos militares (…), aos padres, ao comércio monopolizado, à situação política da Europa, à condição da capitania da Bahia, que “sofria latrocinios, furtos com os titulos de impostura, tributos e direitos que são elaborados por ordem da Rainha”, às discriminações que os pardos (mulatos) sofriam por causa da cor da pele, às ideias de liberdade, república, democracia e igualdade sem diferenças de cor. Algumas das palavras mais repetidas pertenciam ao vocabulário entregue ao mundo pela Revolução Francesa: Povo, Liberdade, Igualdade, Fraternidade, Deputados, Republicanos, Entes e Dietas.

     Mesmo depois de sufocada essa rebelião e enforcados e esquartejados quatro de seus ativistas, os ideais libertários da Revolução Francesa continuaram gerando frutos na Bahia. A Guerra da Independência veio na sequência.

     Agora passo a palavra a Jorge Amado, que em seu Bahia de Todos-os-Santos dedicou alguns trechos ao Dois de Julho de 1823:

2 DE JULHO, FESTA CÍVICA E POPULAR

Foi um 2 de Julho”, se diz na Bahia quando se faz referência a uma coisa notável, grande, barulhenta, porreta. A festa do 2 de Julho tem um caráter cívico e patriótico que não lhe tolda a graça popular. Comemora-se a data da entrada triunfante dos exércitos libertadores na capital em 1823. O dia verdadeiro da Independência do Brasil (…).

Monumento a Maria Quitéria. Foto: Marco Aurélio Martins | Agência A Tarde

Monumento a Maria Quitéria. Foto: Marco Aurélio Martins | Agência A Tarde

MARIA QUITÉRIA

por Jorge Amado

O príncipe D. Pedro, no caminho de São Paulo, deu o grito da Independência. Depois foi dormir com a marquesa de Santos. Os Baianos então expulsaram os portugueses que ainda desejavam conservar a colônia. As tropas de Madeira foram batidas no Recôncavo, em Pirajá, em Itaparica. Um avô de Castro Alves, major das forças da Independência, comandava um batalhão. Foi o batalhão mais valente de toda a campanha. Puseram-lhe o nome de “Batalhão dos Periquitos” por causa da farda verde. Os “Periquitos” ficaram célebres, tais foram as suas façanhas na guerra da libertação. Entraram triunfantes na Bahia pelo caminho da Lapinha (…)

Certa moça baiana, de nome Maria Quitéria, de família pobre, não quis assistir de braços cruzados à libertação da sua pátria. Vestiu uma roupa de soldado, apresentou-se ao avô de Castro Alves, mostrou que sabia atirar e fez toda a campanha. Foi um soldado disciplinado, corajoso, capaz, consciente. Honrou o “Batalhão dos Periquitos” e sua tradição é orgulho da mulher baiana.

No entanto, a fama ficou para Joana Angélica, uma freira que defendeu a porta do seu convento. Não a moveu o patriotismo e sim, apenas, a defesa da clausura do tenebroso convento das “arrependidas”. Mas a heroína da Independência é a outra, a mulher que rompeu com os preconceitos terríveis da época, alistou-se como soldado, tomou do fuzil, matou inimigos, lutou de armas na mão, Maria Quitéria. Por isso mesmo injustiçada e esquecida.

BAIANICES – EXU, por zédejesusbarrêto

28/06/2009
Assentamento para Exu num canto do estúdio do fotógrafo baiano Mário Cravo Neto, em Salvador. Foto: Fernando Vivas | Agência A Tarde

Assentamento para Exu num canto do estúdio do fotógrafo baiano Mário Cravo Neto, em Salvador. Foto: Fernando Vivas | Agência A Tarde

PADÊ  (*)

Exu, entidade iorubana cultuada como orixá em terreiros afrobaianos, é o sim e o não, significa polêmica, é a própria dialética da vida.

Aquele que faz as coisas acontecerem.

Para os católicos mais antigos como para os crentes mais modernos Exu está identificado como o demônio, cruz credo, xô satanás.

O tinhoso, o danado, esperto, o amoral, o recadeiro, dono da quizumba.

Sai de baixo!

Pois é bom que se diga que, ainda hoje e sempre, em muitos espaços desse Ilê chamado de Bahia – de todos os santos, caboclos, orixás, voduns, inquices, catedrais, templos, sinagogas, terreiros… – nada se bebe, nada se come, nada se faz e nada acontece sem as bênçãos do Senhor do Bomfim, sem que antes seja providenciada uma limpeza com batimentos de folhas sagradas…             e, primeiro que tudo, a licença de Exu, aquele que abre os caminhos e permite a ação dos homens.

Ele, Exu, o Senhor das encruzilhadas, a entidade do movimento, da comunicação entre os homens e entre os homens e as divindades.

O elo entre o humano e o desconhecido.

Laroiê!!!

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Escultura de Mário Cravo Jr na fachada da Fundação Casa de Jorge Amado, no Pelourinho. Foto: Fernando Vivas | Agência A Tarde

Exu em escultura de Mário Cravo Jr na fachada da Fundação Casa de Jorge Amado, no Pelourinho. Foto: Fernando Vivas | Agência A Tarde

Jorge Amado escreveu no livro ‘Bahia de Todos os Santos- Guia de ruas e mistérios’:

(trecho…)

Exu come tudo que a boca come, bebe cachaça, é um cavaleiro andante e um menino reinador. Gosta de balbúrdia, senhor dos caminhos, mensageiro dos deuses, correio dos orixás, um capeta. Por isso tudo sincretizaram-no com o diabo: em verdade, ele é apenas um orixá do movimento, amigo de um bafafá, de uma confusão, mas, no fundo, uma excelente pessoa. De certa maneira, é o não onde só existe o sim; o contra em meio do a favor, o intrépido e o invencível”.

***

Deu pra entender? Tem mais!

Amigo-irmão de Jorge Amado, o artista plástico/escultor Mário Cravo Jr escreveu e dedicou ao escritor o texto-poema definitivo, que segue.

(fonte: A Tarde Cultural, de 5 jun 1993)

“ Não sou preto, branco ou vermelho;

Tenho as cores e formas que quiser.

Não sou diabo nem santo, sou Exu!

Mando e desmando, traço e risco, faço e desfaço.

Estou e não vou. Tiro e não dou.

Sou Exu!

Passo e cruzo. Traço, misturo e arrasto o pé.

Sou reboliço e alegria.

Rodo, tiro e boto; jogo e faço fé.

Sou nuvem, vento e poeira.

Quando quero, homem e mulher.

Sou das praias e da maré.

Ocupo todos os cantos;

Sou menino, avô, maluco até.

Posso ser João, Maria ou José.

Sou o ponto do cruzamento.

Durmo acordado e ronco falando.

Corro, grito e pulo.

Faço filho assobiando.

Sou argamassa, de sonho, carne e areia.

Sou a gente sem bandeira.

O espeto, meu bastão.

O assento? O vento! …

Sou do mundo, nem do campo, nem da cidade.

Não tenho idade.

Recebo e respondo pelas pontas, pelos chifres da Nação.

Sou Exu.

Sou agito, vida, ação.

Sou os cornos da lua nova; a barriga da lua cheia!…

Quer mais?

Não dou, não tô mais aqui”.

Exu, o mensageiro, em escultura de Mário Cravo Jr em frente à sede dos Correios, na Pituba, Salvador. Foto: Marco Aurélio Martins | Agência A Tarde

Exu, o mensageiro, numa escultura de Mário Cravo Jr em frente à sede dos Correios, na Pituba, Salvador. Foto: Marco Aurélio Martins | Agência A Tarde

(*) – Padê é o ‘trabalho’, o despacho, oferendas que se faz a Exu antes de qualquer atividade, pedindo a sua licença, para que ele abra os caminhos e tudo possa acontecer sem empecilhos ou encrencas.

zédejesusbarrêto, jornalista

jun/2009.

GENTE DA BAHIA – CARYBÉ

19/05/2009
"Mulata Grande" - obra exposta no MAM de Salvador em homenagem aos 70 anos da chegada de Carybé à Bahia

"Mulata Grande", 1980, óleo sobre tela de 61 x 45 cm - obra exposta no MAM de Salvador em homenagem aos 70 anos da chegada de Carybé à Bahia

70 ANOS DA CHEGADA À BAHIA

O artista enfeitiçado
pela luz e pela gente baiana

ZÉDEJESUSBARRETO*

Há 70 anos, num longínquo agosto do ano de 1938, aportou na cidade do São Salvador da Bahia um jovem artista das formas, dos traços e das letras chamado Hector Júlio Páride de Bernabó, ou simplesmente Carybé. Argentino de nascimento, italiano de herança, brasileiro de criação e baiano por escolha de vida.

À época era um moço jornalista de um diário recém inaugurado em Buenos Aires chamado ‘El Pregón’. Tinha a missão de ir desbravando a costa atlântica de sul a norte, a bordo de precários navios cargueiros de cabotagem, e, de cada parada, mandar via correio para a redação suas impressões, escritas e desenhadas, dos lugares e das gentes vistos e contactadas.

A Bahia para ele era um sonho, uma meta, desde que lera o romance Jubiabá, de Jorge Amado, lançado na primeira metade dos anos 30. Perguntava-se sempre, intrigado, se aquela gente e aqueles lugares descritos pelo romancista realmente existiam. Queria ver para crer.

Mais tarde, quando aqui chegou para viver como baiano, em 1950, Carybé escreveu sobre aquele definitivo agosto de 1938, assim:

“O gosto da Bahia, como um vinho, vinha-se sazonando dentro de mim há doze anos, desde o primeiro encontro em 1938, numa clara manhã de agosto, dia mágico em que, de um risco verde no horizonte, a Bahia surgiu no mar.
A cidade veio vindo ao meu encontro, cada vez mais luminosa, cada vez mais definida, veio vindo, veio vindo, até que atracou toda no Itanagé.
Nesse ano, fui definitivamente tarrafeado por sua luz, sua gente, seu mar e sua terra”
(Carybé)

Itanagé era o nome do navio.

Por sorte, destino ou feitiço dos deuses, orixás, caboclos e encantados que habitam a misteriosa Baía de Todos-os-Santos, a passagem pela Bahia alongou-se por seis meses.

Sem grana no bolso, logo ficou sabendo que o ‘El Pregón’ fechara as portas, falido. Para sobreviver, foi necessário descobrir o que era aquela Bahia. Trabalhou no cais, trocou prosa com os mestres de saveiros, aprendeu a tocar berimbau e a jogar capoeira com a malandragem, dormiu em armazéns das docas, frequentou os bregas do Taboão e do Maciel, disputou merenda nos tabuleiros de rua, filou muito cafezinho conversando com as putas, encantou-se com o ritmo, os costumes e as cerimônias dos terreiros de candomblé, misturou-se ao povo mais simples, pongou em bondes, conheceu as sete portas da cidade, bebeu muita cachaça de raiz com a negrada, xamegou mulheres, abaianou-se de vez e desenhou tudo o que viu.

Jamais seria o mesmo depois daquela experiência.

A luz, o traçado, o movimento, os fazeres e, sobretudo, a herança africana daquela gente da Bahia mudaram o destino de sua vida. Descobriu que ali era o lugar para se viver de arte, desenhando, pintando… com alegria. Não queria mais ser jornalista. Gostaria de retratar aquele povo, misturar-se nele.

E assim foi. Com os desenhos ‘baianos’ fez exposições, ganhou prêmios, dinheiro e caiu no mundo a percorrer toda a América do Sul, dos Andes à Amazônia, passando pelo São Francisco e a caatinga do nordeste brasileiro.

Estreitou os laços com o Brasil e a Bahia, em particular, nos 10 anos seguintes.

"Bahia", 1971, óleo sobre tela de 46 x 55 cm - obra exposta no MAM de Salvador

"Bahia", 1971, óleo sobre tela de 46 x 55 cm - obra atualmente exposta no MAM de Salvador

Quando aqui chegou em definitivo, para trabalhar para o governo da Bahia contratado pelo secretário de Educação e Cultura Anísio Teixeira, já era um pintor consagrado e conhecido nos meios artísticos do continente.

Mas foi na Bahia, a partir dos anos 50, que ele renasceu, floriu.

Jorge Amado escreveu:
…’Carybé plantou raízes tão fundas na terra baiana como nenhum outro cidadão aqui nascido e amamentado. Bebeu avidamente essa verdade e esse mistério, fez da Bahia carne de sua carne, sangue de seu sangue, porque a recriou a cada dia com maior conhecimento e amor incomparável’.

Carybé participou – ao lado de Jorge Amado, Mário Cravo, Carlos Bastos, Jenner Augusto, Floriano Teixeira e outros tantos artistas do traço, da goiva, do pincel, das mãos, das letras, da música, das artes cênicas, interagindo com eles – de um período de renascença das artes e da cultura baianas: as décadas de 50 e 60. Foi um ator, autor, um motivador, um transformador.

Salvador, nesse tempo, transbordava novas idéias. A Universidade recém-criada abrigava talentos e mestres vindos de vários pontos do planeta, atraídos pela musicalidade, pela dança, pela religiosidade, pelo fazer cultural e o modo de viver do povo. A capoeira deixava os guetos transformando-se numa manifestação de arte. Os candomblés passaram a ser motivo de estudo antropológico e as grandes senhoras da sabedoria dos terreiros baianos começaram a ser respeitadas e ouvidas.

A festividade, a mistura de raças, credos e cores de nossa gente faziam da Bahia, enfim, um lugar diferente, afirmativo da diversidade humana.

Essa Salvador do início dos anos 50 possuía bondes elétricos em trilhos e menos de 500 mil habitantes; os saveiros com seus panos brancos estendidos em altos mastros cortavam as águas azuis da baía, abarrotados de mercadorias ligando a capital aos recantos do Recôncavo; os trens saíam de 15 em 15 minutos da estação da Calçada com destino ao interior e a outros estados vizinhos; os pescadores ainda cantavam puxando a rede do xaréu nas praias; os vales eram mata virgem e os bairros cheios de árvores frutíferas; a grande feira de Água de Meninos, o principal centro de abastecimento da cidade e o Pelourinho era o umbigo da noite com suas prostitutas, boêmios e histórias de encantamento sem fim.

Essa era a Bahia de então. A mesma já cantada por Caymmi, descrita por Jorge Amado, reportada por Odorico Tavares, fotografada por Pierre Verger e desenhada, pintada, esculpida, retratada por Carybé.

O artista Mirabeau Sampaio, contemporâneo, escreveu:
‘Nasci e me criei aqui em Salvador e posso lhe afirmar: na Bahia não existia um negro, era coisa que ninguém tinha visto aqui, até a chegada de Carybé’

Exagero? Então leiam um trecho de um artigo do jornalista e contista Rubem Braga, escrito na década de 50:
‘Carybé não se inspira na Bahia: Parece que é a Bahia que se inspira em Carybé. De repente, a gente vê um negro de camiseta branca ou uma baiana de saia rodada, ou um sobradinho de telhado escuro ‘pintando’ os desenhos de Carybé’

A obra de artistas como Jorge Amado, Caymmi, Mário Cravo, Verger e Carybé extrapola suas artes. Seus legados são, de fato, uma contribuição histórica, um registro antropológico de um tempo, de uma época única, de um povo e de uma cultura diferenciados.

Pode-se até dizer que essa tal ‘baianidade’, esse jeito de viver e ver o mundo não mais existe, que essa Bahia já não mais existe. Claro, a vida é um pulsar constante e tudo se transforma, perenemente. Mas o encantamento, a sofrência e a poesia desse tempo é história. E História não se apaga assim da memória de um povo.

Uma mostra dessa Bahia antiga e mágica, tão viva ainda nalguns recantos da cidade, como nos terreiros de santo, em tradições e festas como a Lavagem do Bonfim e a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, em Cachoeira…

Carybé posa com uma de suas obras em foto de Carlos Santana / Agência A Tarde, 14/05/1997

Carybé posa com uma de suas obras em foto do repórter Carlos Santana / Agência A Tarde, 14/05/1997

Pois quem quiser conhecer um pouco, um capítulo da história desse povo de tantas misturas e magias, que vá, logo, ao MAM-Museu de Arte Moderna da Bahia, no Unhão, avenida Contorno, em Salvador. Lá estão expostos mais de 250 dos cerca de cinco mil trabalhos do genial pintor, desenhista, escultor, muralista, escritor, e arteiro baiano Carybé. O gradil da entrada/descida para o Unhão é arte dele. Aprecie.

A exposição é uma comemoração dos 70 anos de sua chegada à Bahia pela primeira vez, quando foi definitivamente tarrafeado pela luminosidade desta terra abençoada.
Não carece de pressa diante da delicadeza e parcimônia dos traços, da luz, o vazio, as formas, as cores, a grandeza da arte do mestre de riso largo, olhar sedutor, camisa de botões aberta, chinelos e alma de criança. Um dos maiores artistas do século XX.

A bênção Obá Onã Xocum, servo de Xangô.
A bênção Iji Apogã, de Omolu
A bênção filho de Oxóssi, do Ilê Axé Opô Afonjá
A bênção Carybé!

(Carybé nasceu em Lanus, subúrbio de Buenos Aires, em 7 de fevereiro de 1911, mas só foi registrado no dia 9. Morreu em 1º de outubro de 1977, no terreiro do Opô Afonjá, em Salvador)

FotoBarreto*zedejesusBarreto, jornalista, é baiano de Salvador. Escreveu e editou os textos do livro Carybé e Verger – Gente da Bahia, selo Entre Amigos da Fundação Pierre Verger, editado pela Solisluna Design Editora. É também autor, com o jornalista Otto Freitas, do livro/perfil Carybé, Um capeta cheio de arte, da coleção Gente da Bahia, editado pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.

JEITO BAIANO DE VIVER

12/03/2009

Este blog pretende refletir sobre a maneira própria e característica de o baiano ser e estar no mundo. Assim como se fala tanto no american way of life, já considerado até por alguns como a nova religião da humanidade, existe também um brazilian way of life, assim como se pode falar que um dos “estilos” mais fortes da maneira brasileira de se viver é o bahian way of life, que tanto tem atraído estrangeiros à Bahia. Quero debater aqui a tese de que os baianos têm a oferecer ao Brasil e ao mundo um caminho, um norte, de como  as pessoas devem enfrentar as agruras do cotidiano com sabedoria, bom humor, saúde, criatividade e ginga. Vamor ouvir antropólogos, artistas e pensadores em geral, tanto da alta cultura como os filósofos de plantão encontráveis em cada esquina desta Cidade da Bahia. Estudemos o tema com os pés no chão, sem viseiras nem preconceitos, com um olhar realista, como Jorge Amado no “Convite” que abre seu livro “Bahia de Todos-os-Santos”, escrito em 1944:

“E quando a viola gemer nas mãos do seresteiro na rua trepidante da cidade mais agitada, não tenhas, moça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa quotidiana. Teus olhos se encharcarão de pitoresco, mas se entristecerão também diante da miséria que sobra nestas ruas coloniais onde se elevaram, violentos, magros e feios, os arranha-céus modernos”.

Atualizemos esta visão jorgeamadiana para o século XXI, ano da graça de 2009!