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ESCOLAS ESPREMIDAS

26/04/2010

Ilustração de BRUNO AZIZ

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texto de NELSON PRETTO*

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Tenho saudade de uma Salvador dos espaços generosos. Não imagino que o tempo tenha que parar, que o chamado progresso e o avanço do cimento e do asfalto tenham que ser contidos na marra. Mesmo que nestes últimos tempos de chuvas fortes eles tenham dificultado o movimento da água para seu lugar natural, longe de mim pensar em simplesmente voltar para o passado.

Também não quero falar do tempo das praças sem grades, dos chafarizes, fontes de água, casas sem muros ou com eles ainda baixinhos, onde podíamos sentar para prosear e matar o tempo. Para estes temas, os arquitetos, urbanistas, engenheiros, todos os articulistas de várias áreas já vêm escrevendo em A Tarde desde muito.

Quero falar, no entanto, de um espaço que para mim é muito caro: o das escolas.

Nossas escolas encolheram. E muito. Acabaram-se os  amplos campos para o futebol, babas, garrafão ou similares, acabaram as áreas para o tão esperado recreio, também esse espremido entre os poderosos 50 minutos da sequência de aulas. Aulas que normalmente acontecem em salas que, praticamente, mantêm a mesma configuração de muitos anos, quem sabe séculos, e, o que é pior, também elas encolhidas.

São os mesmos móveis, a distribuição das cadeiras, o quadro negro – depois verdes e, nas mais modernas, até digitais –, estes quase todos colocados na frente, para que uma “plateia” de estudantes possa acompanhar as “emissões” dos professores.

No campo de interseção da arquitetura com a educação pouca coisa mudou e Bahia é repleta de experiências nessa área.

De um lado, com a triste proposta de se construir grandes escolas, todas iguaizinhas, replicadas pelo interior do Estado, e ainda por cima com o mesmo nome, antecedido do terrível adjetivo “modelo”. Nada a ver com educação, que precisa mesmo é ir para além dos modelos e caminhar em busca da criação.

De outro lado, tivemos uma rica experiência que não deveria ser esquecida, como a Escola Parque, implantada no bairro da Caixa D’Água por educadores e arquitetos baianos. Idealizada pelo educador Anísio Teixeira em conjunto com o arquiteto Diógenes Rebouças e o engenheiro Hélio Duarte, ali podemos ver, de forma cristalina, uma clara compreensão da importante relação da educação com a arquitetura. Relação essa que nós, da Faculdade de Educação da UFBA, insistimos ser básica para pensarmos a educação no presente e para o futuro.

Tentamos – com sucesso muito pequeno, é bem verdade – uma maior aproximação com a nossa Escola de Arquitetura, para montar um grande projeto para se estudar a relação entre essas duas grandes áreas. Um programa que fosse buscar em Anísio, Diógenes e Hélio inspiração e resgate histórico. Mas que não ficasse só neles. Que fosse também estudar e aprender, por exemplo, com Charles Mackintosh, o arquiteto da Escola de Artes de Glasgow, idealizador de um projeto de escola básica denominado Scotland Street School, hoje belíssimo museu sobre a história da educação na Escócia, onde é possível ver como eram as salas de aula e o funcionamento da escola ao longo dos anos naquele país.

A Escola Parque, pensada por Anísio – que hoje também está aqui em A Tarde na [revista] Muito –, era um conjunto generoso de espaços livres, que incluía, com uma incrível centralidade, um enorme campo de futebol, rodeado de um teatro a la Teatro Castro Alves, uma magnífica biblioteca a la Brasília, um pavilhão para oficinas, repletos de obras de arte de Jenner Augusto, Carybé, Mario Cravo (aliás, como estão esses painéis, alguém sabe?!) e uma ala administrativa com refeitório, padaria e espaço para professores e alunos. Tudo, absolutamente tudo, imerso numa área verde de frondosas mangueiras que, felizmente, ainda lá estão.

Nesse complexo educacional, dizia Anísio, os filhos dos pobres teriam acesso àquilo que os filhos dos ricos têm nas suas casas. Ali estaria sendo formada uma juventude para fazer diferença.

Aqui, num hoje espremido no tempo e no espaço, nossa juventude é deformada para caber, literalmente, nas grades, curriculares e das salas de aulas. Quebrar estas amarras, na busca de uma formação mais ampla, é algo que demanda ações mais corajosas. E isso, não pode mais ser protelado para amanhã.

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*Nelson Pretto – professor da Faculdade de Educação da UFBA – http://www.pretto.info

(artigo publicado originalmente na editoria de Opinião do jornal A Tarde, de Salvador-BA, em 25.4.2010)

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DATAS DO BRASIL

24/04/2010

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texto de zédejesusbarrêto*

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O Descobrimento

Quarta-feira, 22 de abril de 1500:

pela manhã, topamos aves, a que chamam fura-buchos. E neste dia, a hora da véspera (entre as 15 hs e o sol posto – NR), houvemos vista de terra, isto é, primeiramente d’um grande monte, mui alto e redondo, e d’outras serras mais baixas a sul dele e de terra chã com grande arvoredos, ao qual monte alto o capitão pôs o nome o Monte Pascoal e à terra de a Terra Vera Cruz” …

Acima, um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel, dando conta do achamento dessas terras brasileiras, no além mar, terras avistada que estão ao sul da Bahia, na região da Costa do Descobrimento, município de Porto Seguro.

A carta de Caminha , com a boa nova, foi escrita na Ilha de Vera Cruz (já em terra firme) em 1º de maio de 1500, e enviada ao rei com todas as alvíssaras.

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Dia de Jorge

23 de abril é dia de São Jorge da Capadócia, o cavaleiro da lua.

Jorge guerreiro, o Ogum da Umbanda, senhor das demandas.

Jorge, o cavaleiro das matas, identificado no Candomblé da Bahia com Odé, Oxóssi, o caçador, o protetor dos terreiros de Keto/nagôs.

São Jorge, o milagreiro para milhões de católicos que têm em suas casas, entronizado, uma imagem majestosa sua, com manto vermelho, montado num cavalo branco, empunhando uma lança que subjuga um dragão e protege a donzela, aos fundos prisioneira numa torre medieval. Retrato simbólico atribuído à luta de Jorge, o jovem santificado da Capadócia, contra os infiéis, protegendo a Igreja de Jesus Cristo.

Histórias ou estórias da tradição católica que o povo agrega, na ânsia ancestral humana da fé. Pois que assim seja, como o povo crê. Missa pra São Jorge, ebó nas matas para Odé, para Ogum, e que todas as forças do desconhecido nos cubram, nos guardem… Amém.

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Brasília, Tiradentes…

21 de abril de 1960.

Brasília é semente de profecias

Fruto de um sonho gerado nas brenhas

Em traços, gestos de poesia.

Ontem, saga de candangos; hoje, praga de corruptos.

Amanhecer de uma nova era; anoitecer de desigualdades.

Alvorada de JK, vassouradas a Jânio, chumbo grosso de milicos, desvario collorido, tumba de Tancredo, altar de Lula, galho podre de Arruda…

Que os anjos Lúcio Costa e Niemeyer nos perdoem

E que São João Bosco nos acuda !

Cidade símbolo do modernismo

Canteiro, sepulcro de burrocracismo.

Planalto, paralelo, umbigo, telúricos mistérios

Sanatório de loucos, pensão de sabidos, éden de otários…

Brasil, Brasília, cerrado, secura…

Dias tão claros, vidas obscuras…

Esse seu céu azul pincelado de rosa, alaranjado, parece

Nos deixa assim mais perto de Deus, numa prece…

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21 de abril de 2010, 50 anos!

21 de abril de Brasília, de Tiradentes

Liberdade, ainda que tardia!”

Brasil, 2010… ainda agora como antes

Igualdade! Democracia!

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*zédejesusbarrêto, jornalista, escrevinhador

22abril/2010.

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IDEIAS PARA O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR

21/04/2010

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Seguem dois textos de DIMITRI GANZELEVITCH, francês nascido no Marrocos e radicado na Bahia desde 1975. Dimitri fundou a Associação Viva Salvador, que desenvolve ações de educação para a arte. Colecionador de peças de arte popular, ele transformou sua residência, situada no Centro Histórico de Salvador, na Casa Museu Solar Santo Antônio, que reúne seu acervo particular.

Crítico contumaz das ações e omissões dos governantes em relação à Cidade da Bahia, nestes dois textos Dimitri apresenta propostas para um melhor uso do Centro Histórico.

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VIVER NO CENTRO HISTÓRICO

DE SALVADOR

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texto de DIMITRI GANZELEVITCH*

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Voltando ao mau uso do Centro Histórico de Salvador. A rejeição deste bairro pela classe média baiana é uma realidade cultural. Ninguém quer saber se aqui moraram os poderosos, clérigo e nobreza de outras épocas. Nem os responsáveis pela conservação do bairro, seja de primeiro ou segundo escalão, nem o próprio arcebispo, apesar do magnífico palácio arquiepiscopal da Praça da Sé.

Quem manda seus filhos passar férias em Miami e Orlando dificilmente aceitará viver em moldura histórica sem o glamour dos condomínios com playground, zelador e garagem de controle remoto. O escudo invocado sempre é “por causa dos filhos”. Mas lamentar não adianta.

O Centro Histórico necessita de leque sociocultural mais amplo se quiser sobreviver. Há muitos anos defendo a implantação de repúblicas de estudantes, como houve antes da reforma, antes das vaias a um irascível governador. Sangue novo, risos, violões, atitudes rebeldes fazem parte da qualidade de vida de antigos bairros onde espíritos irrequietos e contestadores encontraram refúgio.

Que seria de Salamanca sem suas tunas ou de Coimbra sem suas estudantinas?

Que também fique aqui registrada minha sugestão aos governantes de atribuir, talvez na forma de prêmio, uns ateliês amplos e arejados a alunos recém-diplomados das Escolas de Música, Dança, Antropologia, Belas-Artes etc. Poderia ser sob forma de convênio para um mínimo de dois ou três anos, sem ônus para o contemplado, incluindo luz e água. Uma bolsa-artista. Por que não? Sairia muito mais barato que campanhas publicitárias na televisão e outdoors na Paralela.

Pequenos eventos com programação regular como feiras livres de produtos orgânicos no Terreiro de Jesus e no Largo de Santo Antônio, apresentações semanais de mamulengos e tantas outras formas de atrair e manter uma qualidade de vida diferenciada poderiam mudar os preconceitos da sociedade soteropolitana.

Precisamos reintegrar o Centro Histórico à cidade que dele nasceu. O que não se pode é imaginar que a abertura de um shopping no Santo Antônio ou shows de rock ou de pagode no Pelô solucionarão a previsível decadência do bairro.

Tombado pela Unesco no final do século XX, ou tombando pela falta de visão nos primórdios do século XXI?

(Salvador, 7 de abril de 2010)

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*Dimitri Ganzelevitch – Presidente da Associação Cultural Viva Salvador

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UM CENTRO DE CONVENÇÕES

NO CENTRO HISTÓRICO

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texto de DIMITRI GANZELEVITCH*

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Na década de 90 discordei do espírito que liderou a restauração do Centro Histórico de Salvador. Continuo discordando do aproveitamento leviano que ainda vitimiza este pedaço de cultura e história, ora confundido com um banal Wet’n Wild, ora palco de folclorizações para turismo de massa.

Não me conformo com as “baianas de receptivo”, suas roupas e torços, verdadeira traição à elegância das vestimentas tradicionais. Você conhece cariocas, sevilhanas ou cusquenhas de receptivo? Não me conformo com um monte de erros de como se deve usar este bairro.

Há uns dois anos mandei pela internet uma sugestão de centro de convenções no Pelourinho. Receptividade excelente. De que se trata? Simplesmente de mapear e usar as possibilidades – e são numerosas – para atrair um público variado de profissionais oriundos de todas as partes do mundo.

Temos salas de reunião e auditórios suficientes, hotéis e pousadas para todos os bolsos, restaurantes, bares, sorveterias e teatros para o laser. E mais: não será preciso construir um monstrengo de ferro e concreto para abrigar seminários e congressos. Por que concentrar todos os serviços no mesmo espaço?

Em 1999, fui convidado pela Unesco a um congresso sobre Turismo Cultural em Puebla, no México, cidade tombada como patrimônio mundial. O centro de convenções fica a cinco minutos a pé do Zócalo, coração da cidade. Adaptaram, com desmedido talento, um conjunto de antigas usinas, respeitando os edifícios originais e até as ruínas, levando os participantes a andar de uma sala a outra por jardins, áreas descobertas e velhos depósitos. Passeios para ninguém criticar ou achar penoso. Muito pelo contrário, todos apreciam o aproveitamento da memória material e cultural da região.

Para mudar o perfil do mau uso de nosso Centro Histórico, basta fazer um levantamento exaustivo de suas possibilidades. Senac, Teixeira Leal, Faculdade de Medicina, Ipac (Instituto do Patrimônio Artístico Cultural da Bahia), igrejas…

E assim poderia também se programar a reabilitação dos cinemas Excelsior, Jandaia e Pax, espaços ideais para grandes audiências e exposições. Não, instrumentos de trabalho e bons operários não faltam. O que falta são bons empreiteiros.

(Salvador, 29 de março de 2010)

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*Dimitri Ganzelevitch – Presidente da Associação Cultural Viva Salvador

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AS TAINHAS DO ENCLAVE DA RIBEIRA SE PICARAM

20/04/2010

PORTO DOS TAINHEIROS

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texto de JOLIVALDO FREITAS*

(especial para o Jeito Baiano)

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Os antigos – aqueles bem mais antigos –, garantem que a Ribeira nunca mudou nem vai se transformar. Sua vocação é mesmo insistir numa postura bucólica: gente contemplativa sentada em cadeiras à porta no lusco-fusco. Conversa longa e perdida, olhos na imensidão do mar emoldurado pelas ilhas de Itaparica e Maré.

Um orgulho do itapagipano (jamais chame o nativo de ribeirinho), que vem a ser quem nasce na Península Itapagipana (de Itapagipe) é a total independência que tem em relação às outras áreas da cidade. Digamos que o bairro da Ribeira é um enclave, e como, uma área de resistência ao próprio desenvolvimento e dinamismo da metrópole.

Agora fiquei sabendo que o povo local está retado. Sumiram as tainhas.

Quem gosta de tainha, mesmo com toda aquela espinha, se ressente. Se bem que dona Iaiá sabia e ensinou a muita gente boa, hoje ricos proprietários de restaurantes, como se tira o espinhaço da tainha. Também ensinou a temperar e fazer uma moqueca.

Coisa simples em sua sapiência: deixa a tainha descamada com um pouco de sal por meia hora. Coloca numa frigideira e deixa cozinhar na própria água do pescado. Depois é acrescentar leite de coco. Se for coco ralado e espremido no pano de prato deixe o leite cozinhar um pouco para não dar dor de barriga. Depois coloca rodelas de cebola, pimentão e tomate de forma a cobrir levemente o peixe. Vem e cobre com dendê. Quem gosta e tem coragem coloca pimenta de cheiro. Eu gosto de comer apimentada, com malagueta, arroz e farinha. Tem gente que prefere com pirão. Tudo ao gosto.

Moqueca de tainha

Mas as tainhas estão sumindo. Até mesmo na área do Porto dos Tainheiros, que fica ao lado do hidroporto. Muita gente não sabe que antes de a Bahia ganhar aeroporto internacional, os hidroaviões já desciam nas águas dos Tainheiros. Era uma festa. Quando se sabia, através dos bisbilhoteiros radioamadores, que estava chegando um voo, os moradores de posses botavam a roupa domingueira; homem de polainas, chapéu Panamá e colete; as mulheres com seus frufrus e chapéus de abas largas. Iam apreciar a planagem e o desembarque. Coisa muito fina o hidroporto que até hoje está lá esperando avião aquaplanar.

Quem começou a assustar as tainhas não foram os pilotos. Foi a pesca com uso de bomba. Foi a poluição gerada por indústria de produtos químicos e a expansão das invasões. Mesmo com a água do mar misturada com chumbo e soda cáustica o pessoal nunca deixou de fazer sua moquecada. E não adiantava jornal alertar para o perigo. Se dava dor de barriga a culpa era do dendê.

E foi por causa do dendê, dizem as más-línguas, que houve um dos maiores bafafás da história da Ribeira. E que acabou, por breves momentos, a tranquilidade, agitando o mormaço que vinha do perau onde muito mais antigamente caravelas e saveiros com suas velas triangulares árabes eram consertados em sua ribeira. Mozinho – um valentão temido da Penha até o Largo do Papagaio – pediu à baiana dona Preta um abará. Mordeu e caiu na besteira de perguntar se era feito de feijão fradinho ou flor de milho (baiana que tem vergonha na cara não usa Vitamilho).

A velha não titubeou e empurrou a panela com dendê fervente no pé do indigitado que pulou de banda, se livrou da queimadura e chutou o tabuleiro levando ao chão acarajé, punheta, cocada-puxa, quebra-queixo, queijadas, cocada de coco queimado, lelê, amoda e vatapá. Esparramou e quebrou a guia.

O filho de dona Preta, capoeirista também renomado pelas bandas da Ilha do Rato, deu dois aús e derrubou Mozinho, que já caiu dando uma rasteira e foi briga para mais de hora. Os antigos garantem que os dois saíram muito machucados e foram levados para o Hospital da Cruz Vermelha, por coincidência na Avenida dos Dendezeiros. E, pasme minha senhora e meu senhor: dia seguinte os dois se encontraram, apertam as mãos e ficam amigos.

Ah! Dizem que na Ribeira ainda podem ser vistas as almas penadas de velhos piratas ou o espectro do padre que se enforcou no sino da Igreja de Nossa Senhora da Penha. Basta uma noite chuvosa. Agora mesmo é temporada deles.

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*Jolivaldo Freitas – Jornalista, escritor, editor do blog Joli: http://www.jolivaldo.blogspot.com/

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BEM-VINDO AO CANDOMBLÉ

17/04/2010

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texto de ZENO MILLET*

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Geralmente, o preconceito se forma a partir da falta de conhecimentos adequados acerca de determinado assunto. E assim é com o candomblé. O povo negro, pelo próprio histórico de sua trajetória no Brasil, já sofre, naturalmente, com uma diversidade de discriminações. Com uma religião trazida por eles, não poderia ser diferente.

O candomblé não tem uma ‘escritura’. Não existe um livro litúrgico para esta religião e, assim sendo, toda a informação sobre as tarefas, orações, ritmos e rituais são aprendidos através da oralidade. Toda informação é transmitida através da palavra de geração para geração. Tudo é ensinado pelos mais velhos – e a obediência à hierarquia é o alicerce fundamental para a sustentação de um templo.

Para quem visita um terreiro de candomblé pela primeira vez, é prudente conhecer um pouco sobre o que vai encontrar. É importante saber que em um templo de candomblé não existem perguntas, mas deve-se sempre esperar por respostas.

O primeiro passo a ser dado por um visitante é ser o mais discreto possível – quase despercebido – e observar, atentamente, as reverências, gestos e atitudes dos filhos de santo.

No candomblé existe uma grande quantidade de objetos sagrados, uma vez que os deuses desta religião é a própria força da natureza.

Portanto, é preciso ter cuidado para não tocar em objetos que só podem ser tocados por filhos de santo (e muitas vezes só os mais graduados), não sentar em qualquer lugar, pois existem muitos altares em qualquer parte do terreiro, não entrar em qualquer recinto porque alguns santuários são de acesso restrito, não tocar nas guias (contas de vidro) usadas pelos abians(1) e filhos de santo – pois trata-se de uma representação do Orixá de quem as usa, portanto só deve ser manuseada por ele mesmo ou pela Iyalorixá.

Pode parecer que são muitos ‘nãos’, mas trata-se de uma cultura diferente, com valores, padrões, atitudes, etc., que no cotidiano não se está habituado a conviver.

(1) Pessoas no primeiro estágio da iniciação

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*Zeno Millet – Neto de Mãe Menininha do Gantois; Baba Egbé Otum

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TERREIRO DO GANTOIS – ILÊ IYÁ OMIN AXÉ IYAMASSÊ. Foto de MARGARIDA NEIDE para a revista Muito | Agência A Tarde

TERREIRO DO GANTOIS:

CIDADE DAS MULHERES

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Fundado por Maria Júlia da Conceição Nazaré, em 1849, o Terreiro do Gantois preserva a tradição com renovada energia feminina e muito axé

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reportagem de RONALDO JACOBINA

(publicada em 14.3.2010 pela Muito, revista dominical do jornal A Tarde)

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Domingo, 28 de fevereiro, dez da manhã. Mulheres e crianças, divididas em pequenos grupos, se dedicam à tarefa de separar grãos de feijão-fradinho da casca. O trabalho, que parece simples, exige silêncio e concentração. Na cozinha, homens socam o feijão no pilão, enquanto as mulheres preparam temperos, manuseiam alimentos e mexem as panelas que estão sobre o enorme fogão a carvão.

Numa grande mesa, um lauto café da manhã aguarda as pessoas que, desde a madrugada, trabalham na preparação da festa que acontecerá à noitinha. Uma simpática senhora de semblante sereno descasca a porção de grãos que lhe coube. De vez em quando, retira o olhar da tigela e o lança, serenamente, para as pessoas que cumprem aquele ritual.

Vez por outra, alguém se aproxima da mesa branca de tampo de vidro, onde ela está sentada, numa cadeira também branca, para pedir-lhe a bênção. “Motumbá, minha mãe”, cumprimentam. “Motumbá-axé, meu filho”, responde a senhora de olhos esverdeados que, fora da casa, atende pelo nome de Carmem Oliveira da Silva. Ali, ela é Mãe Carmem, a ialorixá do terreiro.

MÃE CARMEM - Foto de XANDO PEREIRA | Agência A Tarde - 7.8.2007

De repente, surge no salão uma outra senhora que vem cumprimentar a mãe de santo. “Vim desejar feliz ano novo”, diz, enquanto curva-se para beijar a mão da ialorixá. A visitante, de prenome Joana, é vizinha do terreiro e defensora do Gantois. “Não sou de santo, mas ter uma vizinhança como essa torna a nossa comunidade protegida em todos os sentidos”, explica. Mãe Carmem sorri e diz: “Vivemos em harmonia com a comunidade. Isso é muito importante”.

É dia de festa no Ilê Iyá Omin Axé Iyamassê, um dos terreiros mais antigos da Bahia (originário, assim como o Terreiro da Casa Branca e outros tantos, do lendário terreiro Ilê Airá Intile, na Barroquinha, um dos primeiros da Bahia, fundado no século 18) e que ficou mundialmente conhecido como Gantois, fundado por Maria Júlia da Conceição Nazaré, em 1849.

O nome fantasia (Gantois) é uma referência ao antigo proprietário da fazenda, onde hoje funciona a casa de candomblé, no bairro da Federação. A festa que está sendo preparada é para os filhos da casa e é um ritual chamado Olorogum, que marca o início do recesso que o terreiro fará até o Sábado de Aleluia, quando retoma todas as suas atividades.

O feijão, segundo Mãe Carmem, é a comida de Nanã. “Enquanto retiramos a casca, de grão por grão, elevamos nosso pensamento para Nanã, a dona do feijão”, explica a ialorixá, que assumiu o posto no dia 30 de maio de 2002, três anos após a morte de sua antecessora, a irmã Cleuza Millet, falecida em 1998.

Ex-funcionária do Tribunal de Contas do Estado, Mãe Carmem é a filha caçula de Mãe Menininha, a ialorixá mais popular do Brasil. Cleuza era a mais velha e sucedeu a mãe cinco anos após sua morte, em 1986. Dentro dos preceitos do candomblé, as duas filhas biológicas de Menininha foram criadas para ser independentes.

A primeira era obstetra, enquanto Carmem seguiu a carreira de contadora. Apesar de terem levado a vida fora do terreiro, nunca se afastaram da religião. Carmem, “feita” aos 5 anos, é filha de Oxaguian. Menininha era de Oxum. Como filha de santo, a atual ialorixá era a cuidadora dos santos, função que acreditava ser eterna, não fosse os orixás a terem convocado para suceder a irmã, seguindo a tradição de linhagem do terreiro.

Apesar de intuir que seu destino já havia sido traçado pelos orixás, Carmem, assim como sua mãe, resistiu a aceitar a missão. “Sempre achei confortável ser filha de santo, não queria encarar essa missão porque sabia que era árdua, mas Oxóssi me pegou, literalmente, pelo laço e me sentou aqui”.

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MÃE MENININHA

Mãe Menininha

Há 88 anos, a mãe de Carmem, que fora batizada como Maria Escolástica da Conceição Nazaré e desde cedo recebeu a alcunha de Menininha, levava uma vida comum – embora rigorosamente dentro dos preceitos da religião – e também pensou que poderia fugir do destino. Casou, educou as filhas e fez fama como costureira. Quase esqueceu que ela tinha um plano e os orixás, outro. Antes de completar o primeiro ano de vida, sua bisavó materna, Maria Júlia da Conceição Nazaré, decidiu iniciá-la na religião.

Menininha foi “feita” aos oito meses de idade e, aos 28, tornou-se a terceira mulher do clã a assumir o comando do Gantois, após Pulchéria da Conceição, já que sua tia, Maria da Glória, morreu antes de terminar o luto, o que a impediu de ser confirmada ialorixá.

Anos mais tarde, Mãe Menininha revelou que, embora a bisavó, a tia e chefes da casa tenham lhe dito que ela iria servir aos orixás, sentia “um medo horroroso da missão”. “Era uma consciência absoluta do que me esperava: passar a vida inteira ouvindo relatos de aflições, doenças e lástimas e ter de ficar calada, guardar tudo pra mim, procurar a meditação dos encantados para acabar com o sofrimento. Tudo exige abnegação”, teria declarado a ialorixá ao extinto Jornal da Bahia em 1984.

Mas Mãe Menininha não fugiu ao seu destino e soube fazer valer a força das mulheres da família. Com o seu carisma, conseguiu tornar o Gantois o mais prestigiado e famoso terreiro do Brasil. “Ela foi uma das maiores autoridades religiosas do Brasil e teve como sucessoras mulheres inteligentes e dignas, líderes de peso de um segmento importante da nossa população”, afirma o professor Ordep Serra.

Existem atualmente, segundo a Federação Baiana de Cultos Afro-brasileiros, mais de 2.230 terreiros na Bahia. Para o antropólogo, o Gantois, como outros terreiros, tem muito poder. “É um poder religioso capaz de reunir adeptos que procuram, e encontram, remédio para suas aflições, apoio espiritual. Isso não é pouco“, diz.

No caso do Gantois, segundo Ordep, o carisma de grandes sacerdotisas contribuiu para ampliá-lo cumulativamente. “Este poder é também político, no sentido mais amplo do termo: capaz de gerar iniciativas sociais. Mas isso não significa que, no plano da gestão da coisa pública, o Gantois exerça influência decisiva, ou goze de privilégios, como às vezes se insinua. Bem ao contrário: o Gantois tem tido dificuldades para fazer valer seus direitos”, afirma.

Ordep Serra fala dos problemas que o terreiro enfrenta com a invasão do seu terreno. “O Gantois teve seu território mutilado, e mesmo a legislação que lhe protege o entorno foi, e é, desobedecida”. Segundo ele, “embora o Gantois seja, por força de lei, Área de Preservação Cultural e Paisagística do Município de Salvador, a garantia que este diploma legal lhe dá tem ficado apenas no papel”. Mãe Carmem evita falar sobre o assunto, que a aborrece.

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Poder e prestígio

Voltando à história do poder, não são poucos os políticos que se acostumaram a subir a íngreme ladeira do Alto do Gantois para pedir orientação às ialorixás da casa. Antonio Carlos Magalhães foi amigo pessoal de Mãe Menininha e chegou a declarar, certa feita, que os visitantes ilustres que chegavam à Bahia iam primeiro à Igreja do Senhor do Bonfim, depois ao Gantois e, por último, procuravam o governador, referindo-se a ele – governador na época.

Não se sabe ao certo se era bem assim. Mas corre à boca pequena que até mesmo os ex-presidentes da República Getúlio Vargas e João Goulart, além dos governadores Antônio Balbino, Juracy Magalhães, Lomanto Júnior e Roberto Santos bateram ponto lá. Dizem que o ex-governador paulista Adhemar de Barros, também.

Lenda ou verdade, Mãe Carmem evita falar sobre amigos ilustres, especialmente políticos. “Não precisa dar nomes. O Gantois é uma casa aberta a todos”, dá o assunto por terminado. Pelo visto, no Terreiro do Gantois, não apenas os segredos do culto afro estão guardados a sete chaves.

Mãe Carmem é muito discreta. Nem mesmo os nomes dos ogãs famosos (protetores do candomblé, com função de lhe dar prestígio e ajudar nas cerimônias sagradas) ela revela. “Os ogãs são da comunidade”, diz. Sabe-se, porém, que o publicitário Nizan Guanaes é um deles.

Outro assunto que desagrada à ialorixá é a intolerância religiosa. “Existe e sempre vai existir. Como o candomblé é mais forte, eles atacam”, diz, referindo-se às igrejas evangélicas. A Igreja Católica, Mãe Carmem, assim como sua mãe, adora. Tanto que as grandes comemorações do terreiro começam sempre com uma missa. “Me dou bem com os kardecistas, os católicos e até com alguns evangélicos. Acho importante o diálogo interreligioso”, defende.

Em 1986, o escritor Jorge Amado, amigo da casa, declarou à revista Veja: “No Gantois, Mãe Menininha conquistou ampla admiração pelo exercício de uma qualidade muito familiar aos políticos: era mestra no jogo de alternar a conciliação e a resistência. Nunca se rebelou contra o poder, seja do Estado ou da Igreja Católica, que apoiava a perseguição ao candomblé, mas também jamais se rendeu”.

A perseguição policial aos cultos aos orixás, aliás, passou longe do Gantois, mesmo nos tempos mais difíceis. Apesar da pressão, inclusive da imprensa, o terreiro nunca foi atingido, segundo relatam as escritoras Cida Nóbrega e Regina Echeverria no livro Mãe Menininha do Gantois – uma biografia (Editora Corrupio, 2006).

Na obra, há um relato da ialorixá sobre o tema: “A polícia jamais nos incomodou”. De acordo com as autoras, as seitas só podiam fazer suas obrigações com autorização do chefe de polícia, e o Gantois procurava atender a todas as exigências e resistiu graças à força de suas mulheres.

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Filhos famosos

Enquanto os filhos e filhas de santo andam para um lado e para o outro, enfeitando a casa para a celebração, Mãe Carmem resiste à ideia de ser fotografada para a reportagem. “Não tenho intimidade com câmeras. Se for de televisão, então, engasgo, transpiro e não consigo dizer uma palavra”, ri do que acaba de revelar.

A ialorixá, pelo visto, não herdou de Mãe Menininha a intimidade com os holofotes que renderam fama. No centenário de seu nascimento, em 1994, os Correios lançaram um selo comemorativo com sua foto. A boa relação com a mídia e personalidades contribuiu para tornar o Gantois o terreiro mais famoso do Brasil. A popularidade atraiu a atenção de políticos e artistas de todo o País e até de intelectuais brasileiros e estrangeiros.

A pesquisadora americana Ruth Landes, depois de uma temporada estudando o candomblé no Brasil, escreveu Cidade das mulheres, publicado nos Estados Unidos, em 1947, e no Brasil, em 1967, pela Civilização Brasileira. Na obra, a autora descreve Mãe Menininha como uma mulher independente, admirada e dona de si.

Além de ACM, que, pelo que consta, não chegou a ser “feito“ no terreiro, outras personalidades costumavam frequentar a casa. Jorge Amado, Pierre Verger, Carybé, Dorival Caymmi – que a homenageou com a Oração de Mãe Menininha, gravada por Maria Bethânia e Gal Costa nos anos 1970 –, Vinicius de Moraes e muitos outros. Bethânia e Gal, aliás, foram além. Ambas se tornaram filhas de santo da casa e seguem a religião até hoje.

Bethânia e Mãe Menininha

Fui feita por Mãe Menininha em 1981. Caetano e eu, juntos. Porém conheci o Gantois, a casa do axé, pelas mãos de Vinicius (de Moraes) e Gesse (Gessy), então sua mulher e minha amiga; não lembro o ano, mas sei que foi bem mais cedo da data escolhida pela ialorixá para minha obrigação“, lembra Bethânia.

Seguidora fiel da religião, a cantora diz que o Gantois reafirmou tudo o que aprendeu com os pais. ”O Gantois é a casa do meu orixá, portanto a casa que também me acolhe. Vi reforçados ali os ensinamentos e valores que aprendi na casa dos meus pais: humildade, respeito, o sabor da alegria, a necessidade de louvar e agradecer a graça da vida, com suas dores e delícias. Também a confiança, a amizade, a fé, para mim, a base de tudo“.

Para ela, o Gantois é símbolo do que há de melhor no Brasil. “Tudo é belo ali: o som, a roupa, a comida, os cheiros… isso pra não falar dos rituais, que, esses, são segredos guardados pelos de sangue real“.

Assim como a irmã de santo, Gal exalta a importância do Gantois na sua vida. ”Fui iniciada por Mãe Menininha. É uma casa muito especial, um lugar sagrado. As pessoas estão ali para fazer o bem“.

Para Gal e Bethânia, que vivenciaram as gestões de Mãe Menininha e de Mãe Cleuza, a escolha de Mãe Carmem como sucessora foi acertada. ”É uma mulher maravilhosa, o Gantois não poderia estar em melhores mãos“, elogia Gal. Bethânia vai além: ”Ela faz o seu trabalho lindamente. É a guardiã da sempre viva luz que habita ali e nos guia, nós, os seus filhos“.

Em 1995, foi a vez de a cantora Daniela Mercury se iniciar na religião. Ela diz que chegou ao Gantois pelas mãos de Mãe Cleuza, de quem se tornou amiga e filhade santo. ”O Gantois é uma casa especial, e Mãe Carmem é muito amorosa, está sempre presente, atenta e cuidadosa“. Apesar de ter entre os mais de três mil filhos de santo muitas celebridades, Mãe Carmem refuta o rótulo de terreiro dos artistas. ”Aqui são todos iguais“.

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Oxaguian

Vaidosa, a filha de Oxaguian se rende, enfim, aos apelos da fotógrafa. Não sem antes dar uma retocada no visual, o que faz com a ajuda das filhas biológicas, Ângela Ferreira e Neli Silva, respectivamente iyakekerê e iyadagan da casa, os mais altos cargos do terreiro.

A iyakekerê é a mãe-pequena da casa; a iyadagan é a responsável pelas tarefas da cozinha. No caso das duas filhas da ialorixá, as atividades de cada uma vão muito além das funções religiosas. Ângela e Neli são as fiéis escudeiras da mãe e a tratam com um zelo que dá gosto de ver.

Mãe Carmem ajeita o torço na cabeça e ri timidamente para a câmera. ”Sorria, minha mãe. Olhe pra mim que a senhora fica feliz“, pede docemente Neli. Mãe Carmem obedece. Com a aparência cansada, queixa-se da noite mal dormida. ”Às vezes, fico a noite quase inteira acordada, pensando nos problemas“, diz, e logo esclarece: ”Não são meus. São dos outros“.

Uma filha de santo – estas tiveram os nomes preservados a pedido da ialorixá – complementa a revelação. ”Já cansei de chegar na cozinha, altas horas da madrugada, e encontrar minha mãe lá, sentada, pensando“, diz.

A preocupação é compreensível. Afinal, não deve ser fácil comandar uma casa com tantos filhos. São eles, juntamente com os simpatizantes e amigos do terreiro, que contribuem com trabalho e doações para manter o Gantois em funcionamento.

Apesar de ter sido tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (Iphan), em 2002, o terreiro não recebe ajuda governamental. ”Vivemos das doações e trabalhos“, diz a iyakekerê Ângela Ferreira. Ela afirma que o Gantois não segue tabela de preços. ”As pessoas dão uma ajuda para a casa, se quiserem. Fica a critério de cada um“.

As despesas para manter a casa em funcionamento são grandes. Além da comida farta, o Gantois ajuda também a comunidade em seu entorno. Tão logo assumiu o comando da casa, Mãe Carmem reativou as ações sociais do terreiro.

Atualmente, são distribuídas mensalmente cerca de 240 cestas básicas, fixas, além de serem oferecidas oficinas gratuitas de inglês, música (percussão e flauta), artesanato, digitação, dança, dentre outras. Não só para os filhos da casa como para moradores da comunidade.

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Dinamismo e tradição

A despeito da resistência anterior, a ialorixá está longe de lamentar o destino. ”Apesar da missão, nunca fui tão amada como hoje. Isso é o alimento que me ajuda a cumprir a missão que me foi designada“. Uma das mais antigas filhas da casa, com mais de 60 anos de ”feita“, a Ebômim Lícia diz que Mãe Carmem é ”dinamismo sem perder a tradição“.

Após os afagos, ela abre o sorriso para a lente. Nessa hora se revela vaidosa. ”Adoro ser mulher“, diz. O cuidado com a vaidade, no entanto, não lhe rouba a atenção do feijão de Nanã. Muito menos das pessoas envolvidas no ritual.

E os ritos seguem. Após esta festa, será a vez da de Oxóssi, patrono do Gantois, no dia 3 de junho. Depois, a das Águas de Oxalá e, em seguida, a do Pilão de Oxaguian, santo da ialorixá. E assim tem sido no Gantois há mais de um século e meio. E assim, certamente, será. Motumbá!

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NOTA DO EDITOR – Recomendo outro post deste blog – aliás, muito visitado – em que o espírita José Medrado conta com entusiasmo sua participação numa festa no Gantois e exalta a figura de Mãe Carmem, ialorixá do terreiro:

https://jeitobaiano.wordpress.com/2009/06/03/festa-no-gantois/

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A PEDOFILIA EM QUESTÃO

17/04/2010

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O sexo na Igreja

sempre foi tabu

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texto de Zédejesusbarrêto*

(especial para o Jeito Baiano)

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O embrulho ‘sexo e religião’ não vem de agora. Religiosos, família e sociedade sempre se recusaram a abri-lo, por medo ou vergonha de desatar os nós. Há muita hipocrisia empacotada. A maior delas em torno da sexualidade humana. Somos seres sexuais, desde pequeninos, Freud sabia.

O bebê se excita quando a titia safada mexe no seu ‘piu-piu’, de gracinha. Não há maldade, mas olhe o pintinho duro! A menina de sete aninhos se esconde pra ver o namoro da irmã mais velha e sentir na ‘quita’ o gosto da quentura. Sem malícia, só pela gastura. Crianças a sós fazem ousadias, esfregam-se, e o fazem porque é bom, coisa de pura natureza.

Foi assim na minha infância, sob o rigor de uma educação castradora, quando nem se podia escutar conversa de adulto… imagine hoje, com tanta permissividade e reboleichons na TV, internet, hum?

Na pré-adolescência, entre 10/12 anos, a sexualidade explode, é a época das descobertas. O menino aprende a se masturbar, até olhando a própria mãe, e a menina é um poço de curiosidade, sentimentos e emoções secretas. Os meninos enrubescem, as meninas se enfeitam. Apaixonam-se, escrevem diários, têm medo mas querem experimentar, sonham com aquele gozo. Adolescência é tormento de prazeres, inseguranças e silêncios coloridos.

Imaginem o peso da culpa e do pecado, conceitos religiosos, nesse período. Os padres também viveram esses conflitos, muitas vezes não resolvidos.

Fui seminarista. Num internato com centenas de adolescentes e adultos convivendo, o sexo aflora, incontrolável. A pederastia (era o nome) campeava entre meninos, e entre padres e meninos. Libidinagem escondida no medo, mas todos sabiam ‘quem comia quem’.

Namorar com meninas era mais proibido do que a ‘brincadeira’ com o colega. Depois, contava-se o pecado ao confessionário e zerava a culpa com o Deus punitivo, mas o padre ficava ciente de tudo e, dependendo de sua índole, agia, atacando a presa, geralmente uma criança indefesa.

Conheci e conheço padres retos, justos, de fé. Mas vi alguns se valendo da autoridade para aliciar guris. Conheci vigários de hábitos gays, outros taradões. Uns resolvidos, outros não, até aqueles que a abstinência subiu pra cabeça, enlouquecendo-os. O celibato é sim um problemão para muitos. A santidade é uma meta, pouco alcançada.

Mas é preciso dizer também que tem pastor, juiz, atleta, jornalista, professor, militar, político, homens e mulheres, índios, brancos e negões, de todas as idades e classes… com suas taras. Muitos se sentem atraídos, até de forma doentia, por carnes tenras. Há freiras lésbicas, sim, que curtem menininhas.

Sempre assim foi, desde que o mundo é mundo, na Grécia socrática, na Roma dos Césares, nos conventos/castelos medievais, na França de Richelieu, na Alemanha nazista, por baixo dos véus islâmicos, sob a barba de Fidel, em nome da bíblia, nas muralhas da China…

O pior, nos casos dos reverendos da ‘Madre Igreja’ é a ‘moral de jegue’ católica. O tal ‘vício sexual’ não é exclusivo de nenhuma crença, cada uma com suas virtudes e maldades.

No candomblé, por exemplo, o sexo é mais solto pela ausência do conceito de pecado, mas nem por isso se deve comer criancinha nos terreiros.

A infância há de ser cuidada e respeitada, amada. O sexo de um adulto com uma criança será sempre uma violência, um ato de sujeição e covardia, onde for, quem seja o agente. É crime. Entre os muros da Igreja o tema é um velho tabu.

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*Zédejesusbarrêto – Jornalista, ex-seminarista

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DONA DALVA DAMIANA – GENTE DA BAHIA

16/04/2010

DONA DALVA DAMIANA

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Resquícios do religioso

na cidade de Cachoeira

 

Memória e história oral de vida

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texto de SEBASTIÃO HEBER*

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Estou fazendo uma pesquisa em Cachoeira que é para o meu pós-doutorado na PUC de São Paulo. O foco da pesquisa é em torno de Dona Dalva Damiana, fundadora do samba-de-roda Suerdieck, que já ultrapassou os 50 anos de existência.

Ela é detentora de uma sabedoria singular. Suas avós, materna e paterna, morreram com cerca de 90 anos. Toda a vivência de uma Cachoeira que não está escrita, mas que se conserva na mente e no coração dela, advém das informações que suas avós lhe deram. São, especialmente, preciosos os dados concernentes aos resquícios do religioso entre os anos 30 e 50, que suas avós vivenciaram.

Dona Dalva nasceu em Cachoeira em 27 de setembro de 1927, filha de Antônio José de Freitas e de Maria São Pedro de Freitas. O pai morreu cedo, com 51 anos, era sapateiro, e guarda municipal. A mãe foi mais longeva, morreu aos 97 anos.

Sua avó paterna chama-se Vicência Ribeiro da Costa. Dona Dalva não se lembra da data do nascimento dela, mas sabe que o aniversário era no dia de São José, isto é, 19 de março. Ela negociava com coco e peixe em Feira de Santana.

A avó materna, Maria Tereza de Jesus, faleceu no dia de ano novo, mas ela também não se lembra do ano. Ela lavava roupa no rio que passa no bairro do Caquende. “A roupa era bem lavada e até fervida”, conta ela, e tinha muitos fregueses.

Ambas as avós faleceram com mais de 80 anos – “talvez até mais”, acrescenta ela.

É a partir da perspectiva dos saberes locais que vem sendo desenvolvida essa pesquisa, tendo por base a história oral de vida. Sabe-se que nas sociedades ágrafas, a palavra assumia o valor que esses povos conferiam à transmissão dos conhecimentos por meio da oralidade, de cuja capacidade herdavam os conhecimentos e os costumes dos grupos.

Através dos relatos conservados por Dona Dalva, as avós mostram sua vivência naquela cidade e refletem as práticas sócio-religiosas de sua época. Esses elementos são uma moldura para se entender a própria cidade.

As avós participaram das atividades religiosas, especialmente como integrantes de irmandades, que são canais singulares de uma vivência religiosa portadora de uma sabedoria proveniente de espaços não-formais, além de serem um lócus de resistência.

As irmandades tiveram, desde as suas origens, um sentido social. Isto é, foram de expressão interétnica, com obrigações de colaboração mútua com os seus membros. Tudo isso seria para fins múltiplos: desde a compra de alforria, festejos, pagamentos de missa, caridade, vestuário, até a possibilidade de um funeral decente.

Isso tudo nos leva a crer e a constatar que a memória presente só pode ser reconstituída através do testemunho oral das pessoas mais idosas.

Muitas vezes encontram-se preconceitos contra os relatos orais: seriam por demais subjetivos, apenas refletem uma nostalgia do passado. Mas a memória não é apenas um mero voo que nos transporta para um passado nostálgico, mas ela traduz e aponta para o sentimento de pertença salvando a identidade.

O surgimento da história oral de vida tem despertado nos cientistas sociais, de modo particular, nos historiadores e antropólogos, um enorme interesse. Na verdade, esse método tem contribuído para ampliar as alternativas das pesquisas históricas na contemporaneidade e tem sido um amplo espaço interdisciplinar para o qual convergem inúmeros diálogos entre as Ciências Sociais.

A partir da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento de novas tecnologias – gravador, fita magnética de áudio, etc. –, ela teve uma evolução favorável, ganhou força e se expandiu com característica de ciência engajada e militante. Os movimentos contestadores, respaldados em Foucault, Goffmann, Clastres, Thompson e outros cientistas sociais e historiadores, delinearam-se por um viés que estava voltado para dar vez e voz aos excluídos e às minorias silenciosas.

Através desses relatos pode-se inferir quais foram as expressões religiosas mais marcantes naquele período em Cachoeira. Como esses grupos agiam e atuavam? Ficavam à margem da Igreja oficial, na sua expressão paroquial, tinham o controle dos vigários, ou gozavam de uma certa independência? Há elementos daquela vivência que ainda estão presentes, ou muitos se perderam, houve trocas de expressões religiosas?

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*Sebastião Heber – Professor adjunto de Antropologia da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e da Faculdade Dois de Julho, membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris


CHUVAS E CALAMIDADE NA BAHIA

16/04/2010

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texto de Zédejesusbarrêto*

(especial para o Jeito Baiano)

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O cacau tá caindo!

E a cidade veio abaixo

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O cacau vai cair’, dizia o baiano nos meus tempos de infância, morador do Lobato.

O ‘cacau’, na verdade, era a pirambeira de mais de 60 metros que desce de São Caetano e bate lá em baixo à beira da linha do trem, onde, antigamente, chegava a maré dos alagados. A ribanceira, de cima a baixo, começou a ser ocupada desordenadamente pelos mais pobres desde a década de 50 e, a cada outono de chuvas, meia banda de morro descia (e desce lá e acolá)) levando casebres e ceifando vidas. Então, a expressão ‘o cacau desceu’ virou sinônimo de tempestade com desastres urbanos na nossa velha e perigosa cidade.

Conhecemos bem as chuvas de março/abril em Salvador e seus estragos. Isso é do tempo de Thomé de Souza. Piora a cada ano em virtude das construções irregulares permitidas nas encostas e baixadas, pela falta de manutenção, carência de uma campanha sistemática e contínua de limpeza pública, de cuidados com canais e bocas de lobo em ‘operações chuva’ que devem ser feitas três meses antes de as chuvas caírem etc e tal …

Tudo bem sabido por todos, mas sempre desprezado pelos ‘chefes’ de plantão de todos os matizes politiqueiros, em toda a região metropolitana (pra gente se ater às nossas proximidades e urgências).

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Lembro-me de uma chuvarada dessas nos anos 70, eu ainda repórter da Tribuna da Bahia, quando a rua Djalma Dutra virou um rio caudaloso, arrastando tudo em direção às Sete Portas, e dormimos todos na redação porque o toró e a enxurrada duraram a noite e madrugada inteiras. Um caos.

No início da administração (começo da década de 1990) do finado Fernando José (que Deus o tenha) choveu três dias seguidos, a cidade ficou debaixo de água e lama, meia banda da Suburbana veio abaixo e muitas pessoas morreram na lembrada ‘tragédia do Motel Mustang’. Dias de horror.

O alerta deste ano de 2010 aconteceu em janeiro, com os dias seguidos de tempestade em São Paulo, depois no Rio de Janeiro, e o calor infernal do verão. Mas… que mal pergunte, o que foi feito de precaução, apesar dos avisos?

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Agora, tragédia consumada, os incontáveis prejuízos em cada canto, moradias destruídas, famílias ao relento, vidas ceifadas, desamparo, falta de luz, de água potável, de transporte para o trabalho, aulas suspensas, postos de saúde lotados, medo, Lauro de Freitas e Santo Amaro em estado de calamidade, Salvador travada, arriada, ultrajada…

Ah, aí então, as autoridades entram num helicóptero, sobrevoam o miserê e, do alto, decretam ‘estado de emergência ou calamidade’, pronto! Nem melam as mãos. Dever cumprido. Como se isso bastasse para que todos possamos dormir em paz, tranquilos e satisfeitos com nossos (?) governantes e administradores públicos.

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Daí, dizem, vêm mais e mais verbas estaduais, federais (que o povo não vê nem sabe para onde vão) e, daqui a uns dias, aparecem placas, às dezenas, imensos outdoors espalhados em cada canto com o dito ‘Operação Chuva’ e assinaturas de todos os interessados em aparecer como autores das benfeitorias.

E as obrinhas ‘meia boca’ se arrastam o resto do ano inteiro em tapa-buracos e remendos, obras que nunca acabam porque devem ser vistas por todos os eleitores, até as urnas… Ou melhor, até as próximas chuvas do próximo outono, sempre esperadas. Tempestades cada vez mais arrasadoras, porque a Mãe Natureza anda zangada com nossos malfeitos e porque, mais que tudo, nada, ou quase nada se faz direito e sob o devido planejamento quando se usa o dinheiro público. A ‘indústria’ das chuvas é prima-irmã-sobrinha da velha ‘indústria’ das secas.

Mas, nesse instante, o importante é ter números para alardear.

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E administrar cidades não é fazer politicagem. É varrer, é limpar todo dia, fiscalizar… é canalizar e fazer esgotos decentes, construir vias que durem e resistam (como a Pituba, né?), é fazer com que os jovens frequentem a escola o dia inteiro, que os postos de saúde funcionem de verdade 24 horas, que se gaste a verba de comunicação com campanhas educativas e de serviço e não com promoções pessoais, que se faça a dragagem dos canais com frequência, que não se permitam mais barracos nas ribanceiras e sobre os córregos, que se respeite o fluxo das águas e que se ofereça um transporte público decente…

(Arre! Por que nas campanhas eleitorais todos sabem disso tudo de cor e salteado, na ponta da língua?)

Administrar cidades é gerência, é ir para a rua, descer pirambeira, sujar os sapatos, ouvir, fiscalizar obras, cobrar, cuidar da vida das pessoas antes de tudo. Plantar cidadania.

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Agora… desgraça consumada, resta meter a mão para sanar, minorar as dores, as chagas da cidade. Amparar os desabrigados, os que perderam tudo. Restabelecer o tráfego, reparar os danos, religar a luz elétrica na periferia, fazer voltar a jorrar água limpa nas torneiras, dar condições de a vida voltar a fluir com um mínimo de dignidade.

Amém.

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Goteiras e caganeiras

E o tal Congresso da ONU no Centro de Convenções, hein? Que fiasco! Vinte milhões.

Enquanto alguns engravatados falavam de segurança e justiça, bem seguros e justamente abrigados, do lado de fora a absoluta maioria da população se afogava nas ruas, na lama, à mercê dos assaltantes e saqueadores, os carros boiando, as famílias vulneráveis em suas choupanas, à espera da justiça… dos céus!

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Tudo armado para a reinauguração do Centro de Convenções da Bahia, nove meses parado em obras, um grande congresso internacional, ótimo palanque! Eis que a chuvarada …

E, já na abertura, os congressistas corriam das pingueiras, goteiras por todo canto, alguns sanitários interditados, o ar condicionado que não funcionava bem em todos os ambientes e… para completar, na quinta, a comida servida deu caganeira geral. Até tiveram de interditar um restaurante ‘chique’ do local por problemas ‘sanitários’, baratas à mesa. Verdade!

Quanto às resoluções do congresso em favor da segurança pública, da justiça para todos… bem… ‘ora homecreia!’

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Mas no encerramento tem show de Daniela Mercury com a Orquestra Dois de Julho (a $ 173 mil) e de Carlinhos Brown (a $ 186 mil). No reboleichon, chon… Saiu no Diário Oficial, sério!

Sabe quem está pagando a conta? A Secretaria de Cultura do Estado, a mesma que não tem verba disponível para repassar aos editores e escritores contemplados pelo Edital de Cultura da própria secretaria (Fundação Pedro Calmon) realizado no ano de 1998.

Mas, pra que servem livros?

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Poetando com Zé da Luz, poeta popular nordestino :

Brasi cabôco não come

Assentado nos banquete,

Misturado cum os home

Da casaca e anelão…

Brasi cabôco só come

O bode seco, o feijão,

E as vez uma panelada,

Um pirão de carne verde,

Nos dias de eleição,

Quando vai servi de iscada

Pros home de pusição!

Brasi cabôco não sabe

Falá ingrês nem francês,

Munto meno o putuguês

Qui os outro fala imprestado…

Brasi cabôco não inscreve;

Munto má assina o nome

Pra votá, pru mode os home

Sê gunverno e diputado! “

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(Zé da Luz)

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*Zédejesusbarrêto, indignado jornalista e escrevinhador, morador de Santo Amaro do Ipitanga.

(16abril/2010)

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AS MENINAS LÁ DE ITAPUÃ

16/04/2010

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texto de JOLIVALDO FREITAS*

(especial para o Jeito Baiano)

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Houve um tempo que para chegar a Itapuã era um suplício. Isso lá pelos idos dos anos 50 e eu ia no colo da minha mãe, portanto não tenho queixas do percurso. Mas era assim, já que morávamos na Cidade Baixa: pegava um lotação na Boa Viagem, saltava na Praça Cayru, atravessava a rua, subia o Elevador Lacerda. No ponto final da Praça da Sé demorava, mas chegava um ônibus (não lembro se era o Trolebus – ônibus elétrico – ou se era comum) e ia pinga-pinga pingando até o Rio Vermelho. Descia, vinha um outro até a Pituba e daí era um deus-nos-acuda até conseguir transporte para Itapuã.

O que iríamos fazer lá? Veranear é claro. Itapuã era terra de veraneio e pescadores. Tão longe que os moradores achavam péssimo ter de vir para a cidade ou para Salvador, pois era assim que tratavam a capital: como algo distante e a quem eles não pertenciam psicologicamente, embora em parte geograficamente.

Não havia nenhuma casa de alvenaria. A nossa mesmo fora comprada na mão de uma família de um pescador que desaparecera no mar (conto a história mais adiante) e que terminou mudando para Praia do Forte – bem mais longe ainda, coisa de mais de um dia de viagem.

Mas era algo que até hoje o povo lá de casa comenta – os mais velhos, lógico – com saudade matadeira. Diziam, e eu não acredito, que pela Boca do Rio ainda tinha índios remanescentes dos tupinambás e que tudo era dunas e Mata Atlântica. Alguns garantem que tinha raposa pelo caminho e em cada lagoa os jacarés ficavam crocodilando ao sol.

Era ar puro, salitre, e quando em se chegando a Itapuã, à beira-mar, aquela maresia, que vem a ser uma preguiça danada. E se desse para escutar as ondas batendo nas pedras (todo mundo sabe que Itapuã significa “Pedra que ronca”, na língua Tupy-Guarany), aí é que se entregava ao tempo.

O povo lá de casa garante que tinha um tio, já encantado, que tinha espírito (sem trocadilho) aventureiro. Ele gostava de sair para caçar pombas-rolas, jacarés e anuns e também saía com os pescadores para alto-mar em busca de sororoca e atum; e foi num dos barcos que ele costumava ir com os amigos que aconteceu o inesperado.

O dia estava claro, e logo ao alvorecer colocaram o saveiro na água e partiram na direção Norte, lá pelas partes de Arembepe. Quando todos voltavam, no final da tarde, houve uma viração, tudo escureceu como se fosse o fim do mundo. Os raios caíam como chuva e a chuva como se fosse espetos e deu noite alta e ninguém tinha chegado.

Os outros pescadores não podiam sair por causa da arrebentação. Quando o mar acalmou já era madrugada e os companheiros saíram em busca de dar ajuda. Pelo que se conta nas histórias lá de casa, um mestre-saveirista decidiu, com sua experiência, fazer o trajeto contrário aos outros e foi ele quem conseguiu achar a embarcação quebrada ao meio, sem vela e sem leme com os homens agarrados ao que restou do casco e assustados. Miguel Poiteiro sumiu e nunca mais apareceu. Foi a família dele que vendeu a casa para o pessoal lá de casa.

Lembro, nos anos 60 do século passado, do coqueiral fechado de Itapuã, da Lagoa do Abaeté e das dunas que tomavam toda a geografia, partindo de Piatã até sumir pelas bandas da Praia do Flamengo.

E lembro das noites de lua cheia coincidente com o Verão, quando as meninas botavam suas melhores chitas e saíam recendendo a água-de-cheiro, alfazema e naftalina. Passavam flertando e quando tudo dava certo, os coqueiros eram abrigos e a areia da praia era a alcova. Vez em quando um pai com peixeira na bainha botava para correr. Ou uma baleia se aproximava da costa e nos olhava com seu olhar de peixe morto.

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*Jolivaldo Freitas – Jornalista, escritor, editor do blog Joli: http://www.jolivaldo.blogspot.com/

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COPA, ELEIÇÕES E TRAGÉDIA URBANA

13/04/2010

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texto de zédejesusbarrêto*

(especial para o Jeito Baiano)

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Além de quaisquer estudos, acima de todas as recomendações técnicas e políticas, as intempéries nos apontam urgências.

Fora as prioridades humanas maiores – educação, saúde e segurança públicas , sempre repisadas a cada eleição e muito pouco contempladas, as chuvas deste outono nos sinalizam para grandes projetos/obras emergenciais de modernização de três setores básicos, infraestruturais, sem os quais a possibilidade de realização de uma Copa do Mundo de futebol no país e, mais especificamente, na Bahia, está seriamente comprometida.

São eles: habitação, energia elétrica, telecomunicações e transporte de massa/vias públicas urbanas.

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Moradia

A questão habitacional urbana está exposta e precisa ser encarada sem demagogias. A tragédia desses dias no Rio de Janeiro, e que se repete, a cada ano, a cada tempestade em nossas desordenadas e despreparadas metrópoles, nos põe nus diante do mundo, mesmo mal cobertos por números de crescimento econômico que nos ufanam.

Favelas e invasões em morros e encostas, casebres de sopapo e palafitas à beira de córregos e baixadas sem saneamento significam miséria, marginalidade, doenças, catástrofes e mortes prematuras.

A situação de Salvador, nessa área, é de calamidade. A cidade de um milhão de habitantes em 1970 está com mais de três milhões em 2010. Houve um inchaço descontrolado, sem nenhum planejamento. Não há, a esta altura, como remediar de imediato a insensatez das invasões, muitas delas estimuladas e/ou acobertadas pela politicagem de plantão. Sabemos. Nossos bairros periféricos, todos, são resultado de invasões.

Mas não se pode continuar fechando os olhos a cada novo barraco que se dependura, a cada puxadinho que se levanta perigosamente, a cada riacho que se entope com mais uma viela em cima… Porque, antes de mais nada, é preciso preservar vidas.

Se a cada dia, a cada versão nova de PDDU o poder público e privado acha áreas e espaço para erguer novos espigões, conjuntos, condomínios, projetos… Como não há lugar para se expandir a cidade em bairros populares mais decentes, com morada digna, arruamentos, esgotos, segurança e possibilidade de transporte público próximo e barato? Cajazeiras é exemplo.

Não há dignidade sem moradia.

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Eletricidade

A cada sereno, a cada ventania falta luz em meia banda de Salvador, na quase totalidade dos bairros populares da capital e de todos os municípios vizinhos que integram o que deveria ser a Região Metropolitana. Ponto.

Isso acontece porque o nosso sistema é antiquado, a nossa fiação é velha, boa parte dos postes está corroída, nos bairros se vê um emaranhado de fios e gatos, galhos de árvores antigas arriando sobre a fiação, sobrecargas, mal dimensionamento das linhas e ligações… enfim, um sistema elétrico de terceiro mundo, mesmo.

Mas as tarifas cobradas estão num nível de primeiríssimo mundo e as propagandas nos vendem esse engodo. No entanto, a qualquer apagão de fim de semana, desses a que até já nos acostumamos, de tão rotineiros – por causa de um vento, de um trovão, de uma colisão de carro num poste, de um gato mal feito, de uma gambiarra esticada para o churrasco… Pois, tente ligar para os telefones oferecidos pela Coelba e ouça o que acontece. Sempre. As linhas estão ocupadas, congestionadas, tudo travado e os serviços de manutenção, terceirizados, são de péssima qualidade, ineficazes, pra não dizer incompetentes. Até quando?

Há algum projeto de modernização em vista?

Não, não estamos falando nessa baboseira de ‘banho de luz’, não é isso. É energia para todos de verdade, segura, sem estouro de canelas e pipocos de transformadores, dia sim/dia não, sem gatos, com presteza de atendimento, ligações estáveis. Um serviço dentro dos parâmetros das taxas que nós, consumidores, pagamos. A conta chega em dia.

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Comunicações

O mesmo se pode falar de nossos telefones, de nossas ‘bandas largas’ tão estreitas, das taxas altíssimas que pagamos e dos péssimos serviços de que dispomos. Há milhares e milhares de baianos, da Região Metropolitana de Salvador, sem telefone em casa desde as chuvas passadas, porque a fiação foi danificada e até agora as empresas não deram conta de restaurar os transtornos. Alô Telemar!

Com os ventos mais fortes, em algumas localidades, quase toda hora cai a linha e derruba-se a comunicação via internet, seja qual for a empresa provedora. São as antenas, os satélites, as interferências, a tecnologia falsificada, o quê? Mas pagamos a internet mais cara do mundo, a telefonia mais cara do planeta, sabia?

Domingo passado, as emissoras de rádio baianas ficaram sem linha e sem comunicação, sem retorno até instantes antes de começar a transmissão dos jogos de Bahia e Vitória, ali em Feira e em Camaçari. Quando o jogo é mais distante… então, é um suplício, um sufoco para que se consiga uma transmissão de qualidade, sem interrupções. E os locutores ficam bradando contra a nossa telefonia nos microfones.

Vai ser assim na Copa 2014?

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Transportes

E tem a questão do transporte urbano, tão badalada, tão mais do que urgente numa cidade que está travada de tantos carros particulares, de milhares de motocicletas atarantadas, de avenidas congestionadas, de falta de cumprimento das leis básicas do trânsito, de nenhum ordenamento, sem vias exclusivas, de um sonho pesadelo de metrô que não vai aos trilhos, de trens que descarrilam em bitolas dos anos 50 do século passado, de uma via náutica que não nada, coisa nenhuma…

E tudo se agrava a cada manhã/tarde de rush, a cada chuva fina, cada buraco, cada alagamento, cada acidente na via que não suporta mais o fluxo crescente, e… a Paralela, antes um paraíso, tornou-se um drama diário, um inferno.

Pois bem, que venha a Copa 2014, em boa hora, pois a Fifa já deixou claro que a cidade terá de apresentar um transporte de massa moderno, um fluxo urbano decente do Aeroporto ao Centro para que haja jogos programados na dita praça escolhida como sede.

As verbas já existem, alocadas para tais fins. Até os valores estão definidos, à espera do projeto, pelo PAC da Copa. Dinheiro gordo que faz piscar muitos olhos, balançar muitos interesses. Assunto para muito programa eleitoral, mas a cidade tem pressa.

Salvador quer saber, já, qual o projeto melhor, mais barato para o povão, menos custoso para os cofres públicos e também o mais eficiente.

Seria o VLT, espécie de pequenos/leves trens sobre trilhos ligando o aeroporto à Rótula do Abacaxi, e daí conectando-se com o tal metrô de meia légua até a Lapa?

Bem, as nossas tentativas de projetos urbanos sobre os trilhos, até agora, têm sido pífias. Como exemplos, o VLT dos tempos de MK na prefeitura que não deu em nada; o atual metrô, que já tem 11 anos e não anda, sequer gatinha; e os próprios trens suburbanos, restos da RFFLB dos anos 1950, pobres, inseguros, antiquados e pouco usados. Vez em quando um vagão descarrila, sobre dormentes sem manutenção adequada. Um abacaxi de caroço.

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O BRT, o que é?

A outra alternativa, tida como mais rápida, moderna e de custo mais barato é o chamado BRT-Bus Rapid Transit. São grandes ônibus acoplados, rodando em corredores exclusivos. Esse sistema deu certo em Curitiba, em Bogotá, está sendo implantado em cidades da China, do México e é a novidade na África do Sul para a Copa de junho próximo.

Dizem os técnicos que é muito mais fácil e mais barato de ser implantado, agride menos a paisagem, atende a todos os objetivos de transporte de massa rápido e eficiente, é seguro e sairá com uma tarifa muito mais barata do que qualquer metrô ou VLT. E mais, adequa-se melhor à topografia de vales e cumeadas típica do cabo (geográfico) onde está plantada a cidade.

 

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É assim? Eis a discussão.

Os dois projetos estão em pauta. Há grupos privados interessados de um lado e do outro, pois a grana disponível é boa.

Mas urge que os poderes municipal e estadual sentem-se à mesa, juntos, desarmados, sem querelas eleitoreiras porque o povo quer soluções para seus problemas e não blablablá, ouvindo técnicos, a opinião de estudiosos, as propostas dos grupos interessados… e decidam, já, o que é melhor para a cidade, para o estado, sobretudo para o povo,essa massa que usa e carece de transporte de boa qualidade, há anos.

O debate está aberto, as cartas aí estão.

Não há tempo a perder. A corda está no pescoço, estrangulando. O povo está de língua de fora.

E… a Copa já é amanhã.

 

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*zédejesusbarrêto, jornalista (13abr/2010)

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