VAPOR DE CACHOEIRA, 190 ANOS

ILUSTRAÇÃO DE BRUNO AZIZ

ILUSTRAÇÃO: BRUNO AZIZ

por JORGINHO RAMOS*

 

Há 190 anos, exatamente em 4 de outubro de 1819, foi realizada a viagem inaugural do Vapor de Cachoeira, uma revolução tecnológica para a época. Pela primeira vez na América do Sul viajava-se sem a necessidade dos ventos para impulsionar as embarcações.

A proeza foi uma conquista do Marechal de Campo Felisberto Caldeira Brant – mais tarde agraciado com o título de Marquês de Barbacena –, o seu cunhado Pedro Rodrigues Bandeira e Manoel Bento Guimarães. No ano anterior eles tinham recebido de Dom João VI a carta régia que os autorizava a implantar como um “privilégio real” a navegação a vapor. Receberam também a exclusividade na exploração do serviço de navegação na costa da Bahia e em seus rios, por um prazo de 14 anos. Logo, mandaram vir da Inglaterra uma máquina a vapor e adaptaram-na a uma embarcação que mandaram construir no Estaleiro da Preguiça.

O jornal “A Idade d’Ouro do Brasil”, o primeiro a ser publicado em Salvador, defendia o empreendimento afirmando que na Europa “já não mais se fabricam barcos de outra espécie para a navegação dos rios”. E justificava: ”Os rios do Recôncavo desta cidade são todos bordados de altos morros que abafam o vento às embarcações e lhes retarda a viagem. A introdução, pois, dos barcos a vapor será aqui de incalculável proveito e, segundo os avisos anteriormente feitos nesta folha, temos de ver esta introdução muito brevemente”.

Na viagem inaugural entre Salvador e Cachoeira, ponto final de navegabilidade no Rio Paraguaçu, o barco a vapor conduzia as principais autoridades e “pessoas gradas” como o Conde da Ponte, então governador, os empreendedores, magistrados e outros convidados. Saíram de Salvador às 11 da manhã, atravessaram a Baía de Todos os Santos e entraram rio adentro, chegando às oito da noite à Vila de Cachoeira, então em festas. Foi feita em nove horas uma viagem que durava às vezes até cinco dias.

Logo o Vapor de Cachoeira se incorporou à vida baiana, e não só pelo aspecto econômico, com a redução do tempo de viagem entra a Cidade da Bahia e Cachoeira, na época entreposto comercial. O Vapor de Cachoeira e outras embarcações, como os saveiros, eram o principal meio de ligação entre o litoral e o sertão da Bahia. Além de pessoas, transportavam principalmente mercadorias e notícias. Os produtos manufaturados seguiam até Cachoeira e da lá eram levados em tropas de burros – e mais tarde de trem – para abastecer o interior da Bahia. Na rota inversa trazia para a capital a produção dos engenhos de açúcar, de fumo, algodão e tudo mais que o sertão produzisse.

A embarcação original foi destruída anos depois. Alguns dizem que, durante um temporal, foi destroçada em Mont Serrat. Outros, que foi destruída em 1823 por soldados de Madeira de Melo, durante a guerra pela Independência.

Certo mesmo é que a navegação a vapor foi interrompida durante muitos anos. Consta que essa ausência originou os primeiros versos da célebre cantiga popular, como uma ironia dos mestres saveiristas a realçar a excelência dos seus barcos a remo, em contraponto ao barco a vapor. Tornou-se lendário, a inspirar artistas, namorados e cantores nas muitas variações de sua quadrinha mais célebre:

“O Vapor de Cachoeira/ Não navega mais no mar/ Arriba o pano, toca o búzio/ Nós queremos navegar”

É uma evidência de que o Vapor de Cachoeira já tinha sido incorporado à cultura popular e entrado para o folclore. Anos depois, em 1836, a navegação a vapor na Bahia foi reativada e ele renasceu para viver sua fase áurea até a década de 60 do século XX, quando a navegação até Cachoeira foi extinta. Mas está presente até hoje na História do Brasil, na literatura e, principalmente, eternizada na memória do povo.

O aniversário do Vapor de Cachoeira pode ser uma oportunidade não só para se discutir a sua importância histórica e cultural, mas também para divulgar a ideia de que o turismo histórico e sustentável pode ser mais uma opção econômica e social para o Recôncavo. Esperemos que a Rota do Paraguaçu, trecho por onde o Vapor de Cachoeira circulou, possa em breve vir a ser reconhecida pela Unesco como patrimônio da humanidade.

 

*Jorginho Ramos é jornalista, professor, gerente de Jornalismo da TV Educativa

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3 Respostas to “VAPOR DE CACHOEIRA, 190 ANOS”

  1. maisa paranhos Says:

    Lindo, muito lindo, o artigo. Despretencioso e poético, resgata belamente a história da Bahia e, ainda mais, aponta, a partir dessa matriz, a história, uma possibilidade para o uso turístico fundado, não no feitiche, e sim, a meu ver, no que essa terra tem de seu, de próprio, para se valorizar e ser valorizada. Sem apelativos…
    Quem sabe, o vapor de Cachoeira navegará no mar…?

  2. francisco Says:

    Jorginho,
    Adoro seu blog, ele sempre me inspira na pesquisa sobre Santo Estêvão, ex-vila que pertenceu a Cachoeira.
    e-mail: francisacp2@yahoo.com.br
    Francisco

  3. André Lima Says:

    Muito legal. Recentemente me chegou um postal dessa embarcação tão emblemática para o povo do Recôncavo.

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