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MIJAR OU NÃO MIJAR NA RUA, EIS A QUESTÃO

17/04/2009

castroalves

A TV Globo deu uma mijada nos baianos. Anunciou em rede nacional que “o hábito vergonhoso dos baianos” de urinar na rua é responsável pela corrosão das estruturas dos viadutos de Salvador. Essa pelo menos foi a chamada da reportagem, o apelo para ganhar a atenção do telespectador, anunciado por apresentadores do Bom Dia Brasil desta quinta-feira dia 16 de abril. Especialistas foram ouvidos e no decorrer da matéria percebe-se que a manchete foi um exagero, serviu para alimentar os tradicionais preconceitos contra os baianos. A vergonha para todos os brasileiros na verdade é o fato de a maior rede de comunicação do país ainda insistir em alimentar esses preconceitos.

“Os viadutos da capital baiana – diz a reportagem, segundo o site do Bom Dia Brasil –, alguns erguidos há mais de 40 anos, sofrem a ação do tempo. Chuva, poluição e salinidade, aliadas à falta de manutenção, garantem os especialistas, ameaçam a segurança de quem precisa deles. Não bastassem as condições ambientais e o desgaste pelo uso, o comportamento de parte da população também ajuda, segundo os técnicos, a comprometer a estrutura destas construções. Estamos falando de um hábito nada exemplar de muitos homens baianos. Basta um cantinho mais escondido e a rua vira banheiro. Segundo engenheiros, o ácido úrico despejado pela turma que não tem vergonha de se aliviar em público é corrosivo:

– A utilização da urina no concreto deteriora esse concreto. Existe uma reação (química). A umidade corrói – explica o vice-presidente do Crea da Bahia, Edgarde Cerqueira. (…)”

No final da reportagem, em vez de cobrar das autoridades tanto a manutenção eficiente dos viadutos quanto a implantação de sanitários públicos em número suficiente, o que se viu foi a Globo puxando o saco do prefeito e dando lição de moral aos baianos:

“(…) As obras de recuperação já começaram e outros 17 viadutos vão receber o mesmo tratamento, diz a prefeitura. Mas para muita gente, o ideal seria que as reformas viessem acompanhadas de uma mudança de hábito”.

Esses sudestinos que faturam produzindo maledicência sensacionalista e  desrespeitando  “baianos” e “paraíbas” não desistem de querer nos colonizar, para que fiquemos tão sem graça e sem sabor quanto eles. A esperança deles é chegar o dia em que não precisarão mais sentir inveja da gente.

Veja-se a questão sob um ângulo completamente diverso, a partir do episódio que vou narrar, tendo como protagonista o grande poeta pernambucano Ascenso Ferreira, nascido em 1895. O episódio, acontecido entre 1959 e 1960 – quando, portanto, o poeta tinha de 64 para 65 anos –, faz parte da crônica de vida dos então jovens integrantes da Geração Mapa, como a estrela maior, o crítico de cinema,  jornalista e futuro cineasta Glauber Rocha, mais o poeta e jornalista Florisvaldo Mattos, o poeta Fernando da Rocha Peres, o teatrólogo e cineasta Paulo Gil Soares, o artista plástico Calasans Neto, o jornalista João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, entre outros.

Antes de fazer seu primeiro filme, Glauber Rocha resolveu conhecer melhor o Nordeste, cuja literatura tanto o fascinava. E nessas viagens uma das pessoas que o encantaram foi o poeta Ascenso Ferreira. De volta à Bahia, Glauber, em parceria com Joca, convidou Ascenso a conhecer Salvador. O poeta pernambucano, figura da primeira geração do modernismo brasileiro, com poemas célebres em antologia, passou um mês na Cidade da Bahia, entre idas e vindas pelos pontos de referência da cultura local, principalmente bares e restaurantes, em andanças em que se misturavam boemia e poesia. Ascenso sempre discorria sobre arte e literatura nas conversas de bar e jardim. Na véspera do seu retorno ao Recife, providenciou-se o encontro dele com jornalistas para uma entrevista coletiva e despedida de Salvador. Foi quando um dos jornalistas lhe perguntou:

– Depois de um mês de estada em Salvador, o que mais lhe impressionou na cidade?

O poeta respondeu com precisão:

– A liberdade de mijar!

Porque ele justamente não sentira nenhum pudor quando precisou se aliviar, não titubeando de escolher a primeira árvore ou a primeira parede que encontrasse. E ninguém o perturbava. . .